Eu tive de arruinar umas quantas casas para perceber que nunca tive outra senão aquela que trago dentro de mim; sujei demasiados lençóis com as minhas botas poeirentas e o meu coração sangrento até perceber que a tragédia de viver é uma ferida que se estanca com as próprias mãos. Ajudei a abrir demasiados armários até ter percebido que a solicitude pelo Outro é apenas medo do Eu quando temos demasiados esqueletos a apodrecer no nosso próprio guarda-fatos.
Mas hoje descanso em paz; para o bem e para o mal, enterrei todos os meus ossos. Hoje a casa em que entro é minha e de mais ninguém, e durmo à noite descalço e de peito aberto, agarrado à minha loucura nua. Hoje o cortinado paira despreocupado ao sabor da aragem quente de verão, e debruço-me sobre todas as minhas janelas sem pensar nas cobras debaixo do parapeito; hoje o céu do fim de dia caiado de amplidão já não cai sobre mim onerosamente como um remorso irredimível, mas antes se coa lenientemente por meu corpo adentro, como os fios de música que os dedos de minha mãe derramavam quando me amparavam no escuro — o mal das pessoas foi sempre não ter aprendido a ouvir a melodia que todos os dedos têm.
Hoje, ao anoitecer, já não fujo dos cantos de todas as minhas paredes com medo das sombras que eles possam guardar em si. Hoje já não tenho de fugir pela janela quando me batem à porta – porque hoje já não tenho visitas. Afinal, que valor têm elas quando para as receber um homem tem de esconder toda a mobília que tem e deixar a casa vazia e puída como a delas? Esta madeira aqui está podre, aquele quadro não combina com as cores da sala, as janelas são demasiado pequenas, o chão é demasiado frio e áspero, as divisões estão todas desarrumadas. Pois que hei eu de fazer, porra? Arrombam-me a porta (fui eu que deixei a chave debaixo do vaso ao pé da entrada), irrompem-me por casa adentro (fui eu que os convidei a entrar), esquadrinham-me e criticam-me os quatro cantos de todas as divisões (fui eu que lhes deixei ver tudo), e depois disto tudo ainda têm o descaramento de acabar o dia a lanchar na minha cozinha aos risos e às gargalhadas (fui eu que sugeri). Este recuerdo aqui é feio, Obrigado, comprei-o a pensar na melodia dos dedos, Na quê? Deixa estar, És estranho, Ainda nem viste o sótão.
Talvez arranje um cão; preciso de alguém com quem falar, mas as pessoas vêm atreladas a palavras. Palavras e o raio dos juízos de valor. Palavras vazias, que se espalham pela minha casa e me mancham tudo, me fazem sentir um sem-abrigo e me desterram do único lar em que fui feliz; juízos que me invalidam a casa e a veem como um antro. Não fales, caramba. Faz da minha casa museu – entra, entra mas não fales. Vai passando pelos artefactos que tenho aqui dentro, e finge perceber o seu significado; abana imbecilmente a cabeça em cega afirmação e concórdia com o que encontrares, faz de conta que entendes tudo, que entendes o sangue nas paredes e as folhas todas espalhadas pelo chão, que entendes os montes de cinzas no quarto e as máscaras todas empilhadas na mesa. Faz de conta que me conheces. Julga, mas em silêncio. Julga, mas conservando sempre na tua mente a dúvida de saber se estás a julgar corretamente ou não, por não teres a certeza do significado das coisas que estás a ver. Epá não entendo nada deste quadr… não fales alto, arre, estamos num museu – não entendes o problema é teu; finge que entendeste e continua a andar.
Sim, um cão, é mesmo isso, decerto que ele me compreenderia; a solidão sempre foi uma questão de incompreensão – sempre foi uma questão de falar em duas línguas diferentes. O cão ao menos só tem uma. Babosa e salivante; lambedora. A verdade é que tentei durante demasiado tempo imitar as casas arrumadas dos outros até ter percebido que a casa de uma pessoa é demasiado íntima para passarmos uma vida inteira a dispô-la da maneira que nos pedem. Estou desamparadamente só.
Talvez seja esse o preço a pagar para se viver na própria casa.
Então, vamos aí quando? amanhã? Sim, sim, podem vir amanhã, O quê? não te consigo perceber, estás a falar estrangeiro, Ah, desculpa, sim, venham amanhã – mas ficamos todos no quintal.
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