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Salomé Lourenço

A intolerância não falta às aulas

Pergunto-me se é por estarmos todos em Direito. Se é por este curso tipicamente reunir alunos que gostam mais de falar do que de ouvir e que se orgulham das suas convicções inabaláveis. Se é porque no futuro teremos que convencer um juiz de que encontrámos os melhores argumentos ou os portugueses de que é em nós que têm de votar. Se é por isso que ela passeia, intocável, pelo campus. Mas não, não pode ser por isso. Porque ela não está só aqui, na nossa faculdade.


Falo da intolerância. Ela está por todo o lado e em muita gente. Vem de baixo, do interior da Terra, de onde vêm o resto dos demónios. Vai subindo e vai-se  espalhando em tudo quanto é sítio, passa pelas frinchas das portas e das janelas enquanto dormimos e entra nas nossas casas sem fazer barulho. Depois entra em nós e toma conta de nós, vai ocupando o espaço entre os órgãos, até já não sobrar espaço, só intolerância. E levamo-la para todo o lado. É companhia, está confortável dentro de nós e nós confortáveis com a sua presença, como um parasita bem-vindo. Levamo-la para a rua, para os nossos grupos sociais, para a faculdade. E encontramos outros como nós, doentes com intolerância mas sem o saberem.


Alguns têm a mesma variante de intolerância que nós; desses gostamos. Com esses partilhamos a intolerância, alimentamo-la em conjunto. Outros, têm outros tipos de intolerância; com esses não falamos. Ou se falamos não ouvimos, não vale a pena porque sabemos que a nossa intolerância é a certa, não há espaço para duas. Nem há espaço para dúvidas. Pôr em questão aquilo que sabemos é para quem ainda não tem uma intolerância dentro de si, é para quem ainda não tem o ombro amigo a que pode recorrer para confirmar aquilo em que acredita e dissipar qualquer dúvida matreira que comece a surgir.


Durante uns tempos achou-se que a intolerância não conseguiria chegar às faculdades. As faculdades seriam como Harry Potter protegido pelo feitiço anti-Voldemort e anti-intolerância. Porque as faculdades, afinal, são um espaço de diálogo e de abertura a diferentes ideias, onde alunos se deveriam sentir confortáveis para exprimirem as suas opiniões e aprenderem em conjunto, dentro e fora da sala de aula.


Mas enganámo-nos. A intolerância não falta às aulas, chegou às universidades e chegou à Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Acha que é invisível, mas eu, e outros, vemo-la e sentimos a sua omnipresença. Está nas discussões feias que há quatro anos seguidos a minha turma da licenciatura tem a proeza de conseguir espoletar no grupo de whatsapp do nosso ano, discussões essas que decorrem pelo facto dos intervenientes se recusarem a tentarem perceber o ponto de vista uns dos outros. Está nos juízos de valor que eu própria faço quando um colega faz perguntas pouco pertinentes na sala de aula. E está no recente super escândalo da nossa faculdade, onde alguns membros e apoiantes de ambas as listas candidatas à Associação de Estudantes não tentam compreender o lado oposto.


Claro que é mais fácil ser-se intolerante. É mais fácil acharmos que somos senhores e donos da razão, vermos o mundo a preto e branco e encontrarmos paz no facto de, perante a incerteza do amanhã, pelo menos termos algumas certezas sobre o hoje. Não sabemos se começará uma nova guerra ou se teremos boa nota no próximo exame, mas pelo menos temos a certeza de que a lista D/I é que abriu o precedente dos votos em mobilidade, e quanto a isso ninguém nos pode convencer do contrário.


Mas ser-se intolerante também é ser-se pobre de espírito e ignorante. Faz-nos mal, corrói-nos a nós e aos outros, como uma doença infecciosa. Leva-nos a julgar as pessoas baseado na lista ou no partido a que pertencem antes de as conhecermos, antes de lhes darmos oportunidade de explicarem as suas opiniões. Afasta-nos uns dos outros porque nos leva a presumir em vez de perguntar, a não querermos conversar ou a conversas que são bi-monólogos, em que nenhuma das partes se ouve mas ambas tentam convencer-se de que estão certas. Leva a um ambiente de faculdade hostil em que as pessoas não se aceitam, em que só nos sentimos bem junto aos que partilham da nossa opinião e, em último caso, leva a uma sociedade em que diferentes grupos religiosos, políticos e sociais não conseguem coexistir.


Um dia tentei expulsar a minha intolerância. Disse-lhe que fosse para o raio que a parta que aqui já não era bem vinda. Às vezes ainda a sinto a tentar voltar, tentar entrar-me pelo nariz ou pelos ouvidos. Mas eu não deixo, e pouco a pouco, vou-me sentindo a ficar-lhe imune.


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