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Sofia Paulino

A revolta das queridas e doces Tágides

Invadem a nossa casa. Sem qualquer convite, arrombam qualquer entrada para o alto mar. Desbravam as ondas que nos embalam ao luar. Contra os ventos que ondulam o cabelo, tomam o nosso mar como seu. Nem o sol quente que lhes sussurra, nem as tempestades que gritam para recuarem, pois não é o seu lar.


Medo, esse assombra-os apenas quando o silêncio impera. Durante a noite, tocamos com a cauda na casca do navio. Madeira áspera e desgastada pelas rochas dos caminhos. Na proa, está a nossa imagem gravada a lenha. Há pouca iluminação no convés. Todos dormem. O nosso canto acompanha o tilintar do sino, no mastro principal, que chama os marujos. Acordam todos como se de uma emergência se tratasse. Nem pelas estrelas estavam iluminados, apenas pela luz do farol que está na popa. Aproximam-se freneticamente da borda para nos contemplarem. Vislumbram-nos como se nós fossemos deuses, com letra minúscula, pois somos parte mulher, e como tal somos vistas como fracas. Somos frágeis, ingénuas e puras, é assim que nos veem. Fáceis de manipular para satisfazer as suas necessidades carnais. Somos a aparente Ilha dos Amores, que aparece como troféu. Aguardamos que estes homens imundos nos tomem e que nos mostrem o que é a satisfação, é o que desejam.


Contudo, a verdade é algo muito diferente. Não constituímos estas criaturas dóceis que carecem de dominância, mas sim, seres concebidos na dor, robustas e livres, que não devem submissão a nenhum homem.


Ignoram e caem nos encantos físicos e vocais. Não existe cera que os proteja, nem cordas que os amarrem aos mastros. Vão caindo à água como âncoras. Tocam-nos na pele gelada e escamada. Deslumbrados com a magnitude das caudas lustrosas, tentam percorrer a mão ao longo do tronco nu. Procuram o derradeiro beijo, à medida que vamos descendo. Pensam que encontraremos a cidade perdida, onde nos amaremos eternamente. A realidade é que os arrastamos para as profundezas, onde o azul Marinho se confunde com a escuridão das fossas. Só lá existem navios a apodrecer repletos de restos mortais.


Quando começam a ficar aflitos pela falta de ar, despertam da hipnose em que eles próprios se submeteram (não vale a pena referir que os enfeitiçámos). E num ápice, já se querem ver livres dos nossos braços, onde procuraram momentos antes afogar-se. Estremecem com aflição. Tentam, inutilmente, alcançar a superfície. As bolhas de ar dividem-se, são tantas que embelezam o mar. Cada vez mais fundo, olham-nos de uma forma diferente, já não somos formosas, mas o pesadelo em carne e osso. Um sorriso era o que estes homens queriam para os confortar, mas nós sorrimos, eles é que não gostam do tamanho dos nossos dentes. Nos seus últimos suspiros, sentem o seu corpo a ser devorado. Fragmentam-se em pedaços tão redutores como a sua existência.

Depois de toda a alvoroçada, os ossos desaparecem no fundo. E o barco? Esse terá o mesmo fim.



Muitos deles não queriam obter satisfação carnal connosco, apenas monetária, vender-nos em praça pública. Eles tornar-se-iam Imortais, com o legado dos “sobreviventes”, que resistiram e, ainda, trouxeram “peixe” para casa. São homens os alvos destas “glórias”.


Nas histórias que rumam a terra, seremos sempre as vilãs, quando, apenas queríamos salvaguardar-nos. Podem dizer que é macabro. Talvez seja, mas mesmo isto não os impede de nos subestimarem.






NOTA: desenho elaborado pela autora do texto

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