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Rafael Santos

Agosto

Lembras-te do Verão em que tudo começou?


Eu convidei-vos, a ti, ao João, e ao António, ao nosso grupo, para virem passar comigo o mês de agosto, na quinta dos meus avós, no Ribatejo. Era a primeira vez que ia para lá sem eles: o avô Alexandre morreu em fins de setembro, fulminado por um ataque de coração, enquanto colhia morangos; a avó Madalena morreu pouco depois, na primeira quinzena de outubro, “de desgosto”, como diz o meu pai. Sempre é verdade o que dizem: na velhice, a tristeza mata.


Vocês aceitaram o convite. Confesso que, por mim, só te tinha convidado a ti. Os outros eram dispensáveis. Não que não gostasse deles. Gostava, ainda gosto, muito; mas era contigo que eu queria estar. Era contigo que queria passar aquele Verão, e concretizar os mil planos que tinha na minha cabeça para nós.


Chegámos ao fim de uma tarde de inícios de agosto. O céu tinha apenas umas camadas de nuvens desfiadas aqui e ali, e estava pintado de um tom roxo alaranjado que só a natureza consegue criar. Enquanto eu, o João e o António ficámos a tirar as malas da bagageira, tu sentaste-te no capô do carro, com olhar sonhador, a ver uma nuvem ser levada pelo vento. Recordo-me de olhar para ti e de ficar com borboletas na barriga, enquanto contemplava o teu perfil distante, inalcançável, de uma Beatriz, de Dante. Se tivesse dúvidas, naquele momento, sabia exatamente o que estava a sentir, e o que sempre senti desde o primeiro momento em que te vi: amor.


Nessa noite, jantámos todos no alpendre, ao som do coaxar distante das rãs. O João fez uma sessão de stand-up, daquelas que só ele sabe fazer, e ficámos a rir-nos até de madrugada. Foi já na penumbra da noite que fomos todos dormir e que te levei, já meio tocada pelo álcool, até ao teu quarto, no rés-do-chão. Foste abraçada a mim, como se fosses uma náufraga agarrada a um pedaço de madeira que te vai levar a terra-firme. Antes de te deitar, e não sei se te recordas disto, deste-me um beijo muito ao leve nos lábios, e sussurraste-me um obrigado quase inaudível, acompanhado de um sorriso que guardo até hoje.


Nessa noite, adormeci de coração quente, a olhar as estrelas.



*


Os primeiros dias custaram.

Acordava todas as manhãs, com a janela aberta, e esperava ouvir o assobio do avô Alexandre, como ele fazia sempre, para me despertar. Estranhava essa ausência, esse silêncio. Quando ia à janela e não via ninguém, apenas um extenso terreno semicultivado, percebia que não havia assobio porque já não podia haver. É por isso que me apanhavas sempre cabisbaixo, ao pequeno-almoço, e me perguntavas, nessa tua voz afinada numa nota perfeita, se estava tudo bem. Eu fazia figura de forte, de que estava tudo bem. Mas a verdade é que estava a começar a perceber algo que pude confirmar vezes e vezes sem conta ao longo da vida: há ausências que têm o peso do mundo. Havia dias em que cismava muito com os meus avós. Em que fazia um esforço por imaginar que eles continuavam lá: que o avô Alexandre me ia chamar, de manhãzinha, para o ajudar a arrancar maçãs; que a avó Madalena, perto do meio-dia, ia gritar a plenos pulmões da janela da cozinha, a chamar-nos para almoçar; que depois do almoço íamos os três à vila, para a avó ficar a ver as montras enquanto eu e o avô íamos jogar à bola para o parque; e que, depois do jantar, eu me iria fingir adormecido mais uma vez, no regaço da minha avó, só para ela me poder tapar com uma manta, e me dar um último beijinho de boa noite, juntamente com o avô, antes de apagarem a luz. O esforço de imaginar tudo isto era sincero, mas era em vão. Esses tempos eram memória, e isso era o que me custava aceitar. Mas tu estavas lá. Todas as manhãs, todos os dias, tinha-te junto de mim. Cada manhã que passávamos juntos, no pomar, cada tarde em que íamos passear ao longo do ribeiro, cada noite em que ficávamos até de madrugada a falar um com o outro, a ler, a ouvir música, ou pura e simplesmente com a cabeça encostada uma na outra, a observar as estrelas, era um sinal, uma esperança de que o futuro albergava tantas memórias como o passado, à espera de serem criadas e colhidas.


Foi num dos nossos passeios que percebi que também me amavas. Estávamos a caminhar há uma boa hora, debaixo de um sol inclemente, junto ao ribeiro que corre perto da quinta dos meus avós e que segue até ao Tejo. A certo momento avistámos a velha guarita de betão, permanentemente abandonada desde a morte do Sr. Zé, que marca o início da vila. Como se tinha tornado nosso hábito, parámos lá para descansar, sentando-nos nas velhas cadeiras de couro gasto. Para minha surpresa, no entanto, não ficaste a admirar a paisagem, como das outras vezes; ficaste a olhar para mim. Disfarçavas bem, admito. Sempre que eu desviava o olhar para ti, tu desviavas o olhar para a extensa planície que tínhamos à nossa frente. Fingias ver os patos a levantar voo do ribeiro, o gado a pastar nas forragens queimadas pelo sol, um avião a deixar rasto no céu azul límpido. Mas eu sabia que era só a mim que vias. Tanto sabia que, assim que me voltava para fingir, eu mesmo, que me concentrava na paisagem, via-te pelo canto do olho a olhar para mim novamente. Tive a confirmação deste nosso pequeno jogo de gato e rato no momento em que comecei a sorrir para mim, e te vi, novamente pelo canto do olho, a retribuir o sorriso, como que a dizeres: “Pronto, apanhaste-me! Fazes-me feliz por te fazer feliz!”.


Nessa noite não falámos. Não precisávamos. Os olhos, os gestos, as expressões falavam por nós. O António foi buscar a viola acústica que guardava no meu quarto, e pôs-se a fazer um pequeno concerto privado. Lembro-me que não tocava mal, bem pelo contrário. O João ficou sentando num banco, junto às escadas do alpendre, a fumar um cigarro e a abanar a cabeça ao ritmo da música, olhando a escuridão. Tu levantaste-te das almofadas e começaste a dançar, meneando lentamente o teu corpo de jovem Afrodite, ao som da música. Enquanto o fazias, ias-me lançando olhares provocadores, flamejantes, bem como sorrisos ténues, cheios de promessas. Eu fiquei onde estava, retribuindo os olhares e os sorrisos, enquanto fumava, despreocupado e feliz, o meu cigarro Camel. Naquele momento, tu eras senhora do universo, e eu era o privilegiado que tinha o teu coração. Nesse noite não consegui dormir. Fiquei deitado, a observar a lua, a imaginar que já eramos um do outro.


*


Foi no penúltimo dia.


A manhã chegou nublada, a ameaçar chuva. Depois do pequeno-almoço, o António e o João meteram-se no carro, e foram à vila visitar um antiquário que por lá havia. Tu e eu fomos para a casa onde os meus avós recebiam, em tempos, as visitas.


Essa casinha, metida entre os pessegueiros, a horta dos morangos, e o jardim, foi o meu forte apache, o meu castelo, quando era miúdo. Foi lá que o avô Alexandre me ensinou a descascar pêssegos. Foi lá que o avô Alexandre me ensinou a gostar de música, rodando os seus LP’s num velho gira-discos comprado em segunda mão, em Lourenço Marques, e que para mim era a máquina mais extraordinária que o ser humano tinha criado. Foi lá que o avô Alexandre me ensinou a carregar e a disparar uma pressão de ar, desenhando numa folha de papel um tiro ao alvo que pendurava no tronco de um pessegueiro que ficava à vista da janela. Foi lá, igualmente, que a avó Madalena me vinha servir o chá de limão e mel, e contar histórias de fantasia e dos “antigos”, quando eu apanhava uma gripe de Verão.


No interior da casinha, pairava um ligeiro cheiro a mofo. Os móveis estavam exatamente como os havia deixado, no Verão anterior: o sofá encostado à parede do fundo; a mesa de jantar para quinze pessoas a ocupar o centro da divisão; a ampla janela francesa, de estrutura em madeira e vista para o jardim principal, à esquerda da mesa; o minibar onde o avô colecionava licores, à direita da mesa; e o velho gira-discos encostado a um canto, a acumular poeira. Entrámos os dois, tu com o fascínio da descoberta, eu com a vertigem da nostalgia. Pegaste numa velha fotografia que estava em cima da bancada do bar:


- És tu? Olhei para a moldura, e vi a foto, ligeiramente amarelecida pela humidade. - Sim, quando era puto. Foi num dia em que os meus avós me levaram à praia de Carcavelos. Como podes ver, o meu avô estava apostado em ensinar-me a construir castelos na areia.


Sorris-te, um dos sorrisos mais bonitos que já vi em ti, e disseste:


- Eras tão giro…


E nisto olhaste para mim. Por momentos, senti que o mundo, de alguma forma, parou. Lembro-me de ouvir os primeiros pingos de chuva a cair do lado de fora, a irem contra o vidro. De repente tornaste-te magnética: senti-me puxado pelos teus olhos, pela tua voz, pelo teu calor.


O meu cérebro como que se desligou da razão.


Beijei-te.


Foi um beijo lento. Enquanto ele acontecia, fui retomando consciência da realidade, e o meu coração disparou. Comecei a recuar devagarinho, à espera de uma reação tua. Estavas ligeiramente ofegante, lembras-te? Estavas ofegante, corada, e os teus olhos não se descolavam dos meus. Pela tua expressão, não percebi se tinha cometido um pecado, ou passado uma bênção. De repente, duvidei de todos os teus olhares que dava como certos, de todos os gestos que tinhas feito. Foi o momento mais aterrador e mais maravilhoso da minha vida, o momento em que, ou estava tudo irremediavelmente perdido, ou tudo ganho.


Quando ia começar a falar, não me lembro se para pedir desculpa se para dizer que te amava, devolveste-me o beijo. Devolveste-mo da forma mais intensa e apaixonada possível. Seguraste-me o rosto com ambas as mãos, enlaçaste os braços ao redor do meu pescoço, e assim ficámos um longo momento, que poderia estender-se pela eternidade. Do lado de fora a chuva começou a cair torrencialmente, batendo com força nos vidros. Enquanto o céu desabava sobre a terra, guiaste-me até ao sofá, e nele fizemos amor pela primeira vez.


Ao fim da tarde, a chuva passou. Um tímido sol de Verão apareceu de entre as nuvens, e iluminou a divisão que tão bem conhecia desde criança. Observei distraidamente o lustre de cristais falsos dependurado do teto, e lembrei-me de todas as ocasiões e momentos em que tinha sido feliz ali. Dos jantares em família ou com convidados, das horas que ali passei com os meus avós. E agora, meu amor, olhava também para ti, que dormitavas enroscada no meu colo, e que eras um novo motivo de felicidade, um novo capítulo numa história que temi, durante algum tempo, que tivesse chegado ao fim.


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