top of page
Raquel Lopes

Análise literário-jurídica de "O Processo", de Franz Kafka


“Alguém deve ter difamado Joseph K. pois que numa linda manhã foi preso sem ter cometido qualquer crime.” Assim se principia uma das obras mais perturbadoras e mórbidas do século XX, O Processo, de Franz Kafka.


O enredo centra-se em Joseph K., funcionário de alta patente num banco que, precisamente no dia do seu trigésimo aniversário, acorda com dois oficiais de justiça no seu quarto, pretendendo detê-lo.


Sublinhe-se que, ao longo de toda a trama, K. é mantido em liberdade e leva sua vida “normalmente”, com a única diferença de que agora ele carrega um pesado fardo: um processo incógnito quanto aos motivos e respetivos pormenores. Conforme o processo se vai desenrolando, Joseph apresenta-se em audiências sem fim em lugares velhos e claustrofóbicos. Pode, neste ponto, estabelecer-se uma analogia entre o espaço físico e mental: os corredores intermináveis e escuros simbolizam a busca incessante pela prova de inocência, a luta pela retidão da justiça, a “procura de luz” num processo completamente descabido. É até comparável ao paradigma da justiça dos nossos dias, onde muitas vezes é desconhecido o que ocorre durante um processo, ficando meio que às “cegas”, dependendo somente do poder judicial.


Esta obra oferece uma análise rica em detalhes jurídicos, na medida em que se verifica a violação flagrante de inúmeros princípios jurídicos basilares, tais como o do devido processo legal (dado que K. não teve direito a um processo justo e equitativo, começando pela própria acusação, que nem sequer foi fundamentada) e o princípio da publicidade (tanto K., quanto o seu advogado não sabiam o porquê da sua detenção. Existe uma total falta de conhecimento sobre os processos deste tribunal, como se ele não fosse, de facto, público). Outro princípio ignorado do começo ao fim deste romance é o princípio da duração razoável do processo. A morte de K. – ponto mais marcante da obra - é precisamente despoletada pela demora absurda do processo. O desespero, o medo a roçar o desvario foram simplesmente demasiado para um protagonista exausto e desorientado. Ademais, é importante salientar que ninguém sabia o real motivo da detenção, nem foi dada a Joseph a chance de se defender, o que atualmente feriria o princípio do contraditório. Para finalizar, obviamente que a presunção de inocência também foi menosprezada, o que configura um gravíssimo atentado não só aos direitos individuais de K., mas também aos direitos humanos em geral, dado que esta seria, segundo a obra, uma prática recorrente.


Todas estas transgressões contrariam veementemente a lógica da segurança jurídica, um dos pilares da convivência social harmoniosa. Está claro que n’O processo escrito por Kafka, não há segurança jurídica em nenhuma dessas vertentes, uma vez que um processo arbitrário jamais poderá conduzir à paz social.


Paralelamente ao processo kafkiano, na atualidade também se continuam a apontar, em alguns países, as mesmas críticas: a insatisfação generalizada com o poder judiciário, a sua morosidade e ineficácia, a falta de participação dos próprios envolvidos no conflito (o que começa a ser, contudo, gradualmente minimizado pelas formas de justiça participativa, como a mediação e os tribunais arbitrais) e a utilização de vocabulário dificilmente compreensível pelo comum dos cidadãos no meio jurídico (apreciação esta que deve ser abordada cautelosamente, pois o Direito, enquanto campo científico-jurídico do conhecimento, necessita de uma linguagem específica e detalhada que lhe faça jus).


“Tal como um cão!”. A frase derradeira de Joseph K. resume perfeitamente o tratamento que este recebeu durante todo o processo, não enquanto Ser Humano, respeitando todos os seus direitos individuais e fundamentais, mas como um animal, desprovido de qualquer racionalidade e dignidade. O modo como decorreu todo o procedimento torna percetível a fragilidade do Homem diante da mecanização e do desenrolar dos processos sociais nos quais estamos inseridos, em que os valores e a vida do Ser Humano são relegados a um plano inferior. Assim, a alienação toma conta da razão e da sensibilidade humanas, pois a consciência fica totalmente dominada por essas fragilidades e imposições da sociedade.


O sujeito é desmedidamente mais preso quando a sua própria consciência está amordaçada. O pior controlo e repressão são aquelas que se exercem na mente, onde a esperança não consegue mais alcançar. Ser controlado por dentro, no seu próprio espírito, é a maior das brutalidades – Joseph parece ter perdido a capacidade de sentir-se um ser livre, logo, estaria automaticamente morto sob quaisquer que fossem as circunstâncias.


A trama de O Processo é nitidamente claustrofóbica e obscura, passível de variadas sub-interpretações. Destarte, destaca-se a aceção de que o processo pode até ser encarado como a própria vida, na qual muitos não sabem (ou não entendem) o verdadeiro motivo da sua existência e que, perante as situações desesperantes que enfrentam dia após dia, a única coisa que almejam é o fim desse mesmo “processo”.


Podem também, neste ponto, tecer-se algumas considerações paradoxais: se a lei é supostamente uma expressão de justiça que transcende todos os casos humanos individuais por ser de caráter genérico, mas é, de facto, injusta precisamente por ser tão abstrata, porque é alheia ao caso humano individual, como podemos chegar a um meio-termo ideal? Outro paradoxo interessante é que, embora a lei seja abstrata e descrita como estando acima de todos os assuntos humanos, a verdade é que ela satura e escrutina esses mesmos temas humanos, ou seja, ninguém pode, de qualquer das formas, escapar às “garras da lei.”


Em suma, O Processo não deve ser entendido no seu mero sentido literal, apenas como uma história de um indivíduo que fica “preso” num processo judicial. O livro vai muito além disso. É uma alegoria da situação do homem decadente, do seu estado de culpa permanente e irremediável (mesmo sendo, na realidade, inocente) num mundo onde toda a esperança foi esmagada.



165 views

Recent Posts

See All

Commenti


bottom of page