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Inês Brazão

As histórias esquecidas do Mundial da lavandaria

Muito já se disse, escreveu e discutiu sobre o Mundial de Futebol que há algumas semanas começou. Seja qual for a seleção que leve o título de campeã do mundo, esta competição será historicamente lembrada como aquela em que os interesses económicos de uma instituição e os interesses políticos de um Estado autocrático se sobrepuseram aos valores fundamentais que, enquanto comunidade, deveríamos privilegiar, e do próprio espírito do futebol, enquanto elemento que agrega as massas, exortando paixões e emoções.


Desde 2010, ano em que foi atribuída a organização deste campeonato do mundo de futebol ao Catar, muitas vozes se têm levantado a propósito dos motivos que levaram a esta escolha, e da transparência da mesma. Ainda antes da atribuição em concreto, todo este processo estava já envolto em polémica. Começando na votação, a cargo do Comité Executivo da FIFA, organização essa que é a entidade máxima ao nível do futebol mundial, foram afastados dois membros deste Comité após uma reportagem do jornal inglês Sunday Times, que reportava que aqueles se dispuseram a vender o seu voto. A partir daí, as suspeitas de corrupção sucederam-se, num efeito bola de neve. No buffet de suspeições a propósito deste Mundial, foram servidas tanto denúncias de subornos de vários membros do Comité Executivo, como ofertas de investimento a troco de votos, bem regadas com influências políticas. No ano de 2013, foram ainda chamados à ficha de jogo de obscuridades, o então presidente francês Nicolas Sarkozy, Michel Platini (presidente da UEFA na época) e o emir do Catar, que segundo o jornal France Football, se encontraram para almoçar dias antes da votação.


A investigação que, até ao momento, produziu mais informação, foi levada a cabo pelas autoridades norte-americanas, e ainda se encontra a decorrer. Esta resultou na detenção de 40 pessoas por suspeitas dos singelos crimes de enriquecimento ilícito, gestão danosa e lavagem de dinheiro no processo de atribuição dos Mundiais de 2018 e 2022. A verdade é que todas as investigações lançadas pelas mais diversas entidades ao longo dos anos, chegaram inevitavelmente à mesma conclusão: valores mais altos se levantaram no decurso do procedimento de seleção dos anfitriões destes dois campeonatos do mundo, nomeadamente o valor do dinheiro e do poder, que corroem as instituições de maior gabarito internacional.


Como se as suspeitas de corrupção não fossem suficientes, ainda se vieram juntar à equipa titular deste campeonato do mundo as violações de direitos humanos que ocorrem no Catar, em particular, os direitos dos trabalhadores migrantes. O Catar, um pequeno país da península arábica, tem sensivelmente 3 milhões de habitantes, sendo que 88% dessas pessoas são estrangeiros. Estima-se que 2 milhões dessas pessoas sejam trabalhadores migrantes, constituindo 95% da população empregada. A maioria destes trabalhadores são homens originários de países como as Filipinas, a Índia, o Paquistão, o Nepal e o Bangladesh. Desde o ano da atribuição já foram gastos cerca de 19,3 mil milhões de euros na construção de estádios, estradas, hotéis, linhas de metro e outras infraestruturas necessárias para o torneio. Todas essas estruturas estão indelevelmente marcadas pelo sucessivo desrespeito pelos mais básicos princípios, que, em teoria, deveriam pautar a Humanidade como um todo, e que ocorreram debaixo dos olhares de todo o mundo.


Na busca incessante por proporcionar melhores condições às suas famílias, estes trabalhadores foram subjugados a situações de autêntica escravatura moderna. Até ao ano de 2020, vigorava no Catar o regime da kafala, segundo o qual os trabalhadores ficavam dependentes de um tutor (o empregador, por exemplo), que lhes confiscava os documentos, impedindo a mudança de emprego, e até, a saída do país. A Amnistia Internacional, num relatório por si publicado em 2016, tornou público que os trabalhadores migrantes que estavam encarregues de construir os novos estádios "sofreram abusos sistemáticos, em alguns casos trabalho forçado". Dos 132 trabalhadores entrevistados por esta organização, todos revelaram ter sofrido algum tipo de abuso. A real dimensão desta tragédia ficou patente após uma investigação do jornal inglês The Guardian, publicada no ano passado, que chegou à conclusão de que, desde que o Catar foi designado como organizador do campeonato do mundo de 2022, morreram mais de 6.500 trabalhadores da Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka. Todavia, o próprio jornal ressalva que estes números são, na realidade, superiores, porque não incluem as vítimas mortais oriundas de países como as Filipinas ou o Quénia, nem as mortes ocorridas no final de 2020. Dados do próprio governo catariano indicam algumas das causas de morte destes trabalhadores, figurando nestas os acidentes rodoviários, acidentes no local de trabalho e suicídio. No entanto, a mais comum das explicações é apresentada como “causas naturais”. De acordo com o The Guardian, 69% das mortes entre trabalhadores indianos, nepaleses e do Bangladesh e 80% entre os trabalhadores indianos são enquadradas nesta categoria. O jornal inglês acredita que estas classificações são realizadas sem que haja qualquer tipo de autópsia e não oferecem uma explicação médica verossímil para a causa das mortes.


Como tão bem afirmou o jornal Expresso: “A estatística mais assustadora do Mundial 2022 é, na verdade, um número desconhecido. Ninguém o sabe determinar ao certo. Mas não são golos marcados, dribles realizados ou defesas efetuadas. Trata-se de abusos e exploração. São mortes.”. É importante nunca esquecer que estes números são mais do que meros algarismos, representam vidas, histórias de pessoas como nós. Foi com este intuito que a plataforma de jornalismo de investigação sueca Blankspot desenvolveu o projeto Cards of Qatar. Estes jornalistas decidiram dar um twist às tradicionais coleções de cromos de futebol, elaborando uma coleção dedicada aos trabalhadores que perderam a vida no âmbito da preparação para o Catar receber o campeonato do mundo. Estas cartas permitem materializar o lado humano dos números, ao exibirem uma fotografia da pessoa, o seu país de origem, a sua data de nascimento e morte e, no verso, uma breve exposição do contexto que rodeou a sua morte. Martin Schibbye, editor-chefe e cofundador da Blankspot, deslocou-se às terras-natais de algumas das pessoas por detrás das cartas - aldeias e vilas perdidas no meio de montanhas e vales - e falou com as famílias, mostrou-lhes as cartas. Numa comovente partilha, estas mães, pais, viúvas, órfãos, irmãos, amigos, contaram mais sobre os seus entes queridos que, sem que nada o fizesse prever, adquiriram um bilhete sem regresso para aquele pequeno estado da Península Arábica.


Uma dessas histórias é a de Sita Kumari e dos seus três filhos, Sunita (19), Salina (11) e Manish (9). O marido de Sita, Kubir Singh, emigrou do Nepal para o Catar pouco depois de a primeira filha de ambos ter nascido. Kubir trabalhava na construção civil, era operador de equipamento pesado, e, mais importante, era o “ganha-pão” da família. Durante 19 anos, Kubir fez do Catar a sua casa, regressando ocasionalmente ao Nepal. Sita conta que nas suas últimas conversas com o marido, este mostrava desejo de voltar ao seu país. Ocasionalmente dizia-lhe que se encontrava doente, e os seus colegas de trabalho também. Sita relata que se eles faltassem um dia ao trabalho, ficariam sem dois dias de salário. Eram assim as regras. A narrativa começa a ganhar contornos trágicos quando, num dia de trabalho, Kubir sentiu-se mal e caiu do rolo compressor que conduzia. A viúva afirma que ele interpretou este momento como um sinal e comprou um bilhete de avião para casa. Infelizmente, Kubir não teve a oportunidade de concretizar o seu plano: na sequência de outro desmaio foi levado para o hospital. Dez dias depois, o seu corpo aterrou no aeroporto de Kathmandu, a capital do Nepal. Do seu certificado de óbito constava que a causa da morte era “hipertensão arterial, que afetou os rins”. Sita acusa a empresa para a qual o marido trabalhava de não lhe ter prestado os cuidados médicos adequados e de não ter tido em atenção o seu estado de saúde. A família recebeu, da empresa, uma indemnização no valor de 4.500 dólares. Kubir era a sua única fonte de rendimento, foi graças às quase duas décadas que este passou no Catar que os filhos puderam frequentar a escola, e que ambicionavam, no futuro, construir uma casa para toda a família. Agora, todas essas aspirações encontram-se comprometidas: Sita e os filhos viram-se forçados a mudar para uma casa com piores condições de habitabilidade (tendo sido danificada por um terramoto, a renda desta é mais baixa), e será praticamente impossível os filhos manterem-se a estudar. Este é apenas um exemplo, entre outros que ficaram registados para a posteridade nas cartas.


A receita do bolo de polémicas confecionada pelo Estado do Catar e pela FIFA não estaria completa sem mencionar os valores retrógrados pelos quais se pauta este país. Poucos dias antes do início do campeonato do mundo, Khalid Salman, embaixador desta competição e ex-jogador do Catar, afirmou, em entrevista ao canal de televisão alemão ZDF, que a “homossexualidade é haram [proibido]”, e, antes de ser interrompido por um assessor, teve a oportunidade de completar: “E haram porque é um distúrbio mental”. Nesta senda, nunca é demais relembrar que a homossexualidade é prevista como crime no Código Penal catariano. Numa manifestação de apoio para com a hostilizada comunidade LGBTQIA+, capitães de várias seleções (Inglaterra, País de Gales, Bélgica, Holanda, Suíça, Alemanha e Dinamarca) planeavam utilizar a braçadeira “One Love”. Esta braçadeira, com um coração preenchido pelas cores da bandeira arco-íris e um 1, no centro, representa a luta pela diversidade, inclusão e pelos direitos sociais da comunidade. Porém, estas 7 equipas desistiram da iniciativa após a FIFA ameaçar que o jogador que entrasse em campo envergando a braçadeira em questão, seria punido com cartão amarelo. De acordo com esta entidade, os equipamentos das seleções não podem conter qualquer tipo de mensagens políticas, religiosas ou pessoais, nem imagens. Fica, então, bem patente a hipocrisia de uma instituição como a FIFA, e a sua dualidade de critérios. Se em fevereiro deste ano não hesitou, a par da UEFA (entidade máxima do futebol a nível europeu), em banir a seleção e os clubes russos das competições por si organizadas, na sequência da invasão à Ucrânia por parte da Rússia, agora, a FIFA vem, nem que de modo indireto, apelar a que não se faça do futebol um espaço político. Não questiono a pertinência e adequação da primeira decisão; ponho em causa, isso sim, o facto de existirem dois pesos e duas medidas quando se abordam este tipo de questões no âmbito futebolístico. Das duas uma: ou bem que se fazem campanhas publicitárias a incitar ao respeito e não discriminação, e se sancionam as equipas de futebol de determinado Estado pelas decisões tirânicas dos seus líderes, ou bem que se assobia para o lado e se diz que são 22 senhores a correr atrás de uma bola, e o que interessa é se a mesma entra ou não na baliza, sendo tudo o resto secundário. Fica o meu apelo à FIFA, através deste singelo texto, que escolha um lado.


A poucas semanas da final, é visível a aderência da população mundial, num geral (e nesta me incluo a mim própria), a esta competição. O fenómeno de sportswashing, ou seja, o uso de um evento desportivo para desviar as atenções de problemas graves de direitos humanos, encaixa que nem uma luva no que tem sido o Mundial 2022 desde a sua raiz. Para a FIFA e para o Catar este é apenas um instrumento para atingir os seus fins. No caso da FIFA e da teia de interesses que nela habita, para se enriquecerem. Já o propósito do Catar, sendo um modesto território cercado pelos poderosos estados da Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Irão, deseja aumentar a sua exposição e relevo e demonstrar a sua abertura ao resto do mundo. O Catar, à boleia da FIFA, moldou astuciosamente uma imagem que quis vender à comunidade internacional, por forma a ser convocado para a equipa das grandes potências e a poder dialogar com os titulares da política global. Contudo, e apesar da popularidade deste torneio, a reputação do Catar enquanto país sofreu danos em função de todas estas controvérsias bem conhecidas, não se podendo afirmar que este plano foi bem sucedido na sua totalidade. É, por isso, imperativo garantir que nenhum outro acontecimento social, cultural, artístico ou desportivo tenha as implicações e antecedentes deste Mundial.


Não poderia finalizar este périplo sem antes citar um dos grandes humoristas da nossa praça, Ricardo Araújo Pereira, que, na edição de 18 de novembro da Revista Expresso, com o humor mordaz a que nos habituou, escreveu o seguinte: “O Mundial do Catar tem ainda a vantagem de demonstrar uma teoria que formulei há muito: se desumanidades forem cometidas com uma bola de futebol por perto, ninguém leva a mal”.



Para saber mais sobre o projeto Cards of Qatar:

Instagram: CardsOfQatar

Twitter: CardsOfQatar


Referências:

https://www.theguardian.com/global-development/2021/feb/23/revealed-migrant-worker-deaths-qatar-fifa-world-cup-2022

https://tribuna.expresso.pt/mundial-2022/2022-11-19-Alem-das-estatisticas-ha-cartas-manchadas-de-sangue-no-Catar-O-legado-deste-Mundial-sao-viuvas-a-chorarem-maridos-13c534ed


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