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Pedro Serra

As vantagens de ser invisível? O caso da Eriteia


Em Portugal, as empresas de televisão generalistas, como a TVI, a SIC, ou o RTP, têm canais próprios especializados (SIC Notícias, CNN Portugal, RTP 3) que emitem notícias 24 horas sobre 24 horas, 7 dias por semana, todos os dias do ano, à semelhança dos modelos das suas congéneres europeias. Na grelha de programação destes canais informativos, passam, a certas horas, principalmente no horário noturno, documentários produzidos por outras empresas de produção de conteúdos, quase sempre estrangeiras, como a BBC ou o Canal+. Estes documentários são muitas vezes os programas mais curiosos, esclarecedores e informativos que se encontram nesses canais, onde podemos escapar do Loop das notícias que são repetidas ad nauseam.


Estes documentários, porque são feitos para a televisão, não querem ter qualquer pretensão de serem “obras cinematográficas”, que têm de ter uma muito maior preocupação estética. Pretendem ser peças jornalísticas, informativas. Os documentários que vão sendo emitidos no nosso país abordam temas díspares e extremamente variados. Uns podem expor as dificuldades das mulheres no Irão rural, enquanto outros podem mostrar o funcionamento do submundo do tráfico de droga numa cidade de média dimensão nos EUA. Outra característica que me agrada nestes programas é a sua duração, que normalmente não excede uma hora.


Vem isto a propósito de um documentário que vi recentemente, na RTP3, sobre o atual estado da Eritreia, que me impressionou profundamente. Mas, antes de mais, importa conhecer alguns dados, como o contexto histórico relativo a este pequeno país africano, dado que não se consegue compreender o presente sem conhecer o passado.


A Eritreia é um pequeno Estado situado no corno de África, com uma população de aproximadamente cinco milhões de habitantes. Em termos de composição étnica, é um país multiétnico: o grupo maioritário são os tigrinos, mas também vivem neste país membros do povo Saho, Kunama, ou até o povo tigre (hoje, na vizinha Etiópia, forças separatistas tigre estão a travar uma guerra sangrenta contra o governo federal). Em relação à religião, cerca de metade da população é cristã, e a outra metade é praticante do islamismo. Portanto, existe muita diversidade, quer religiosa, quer étnica.


Historicamente, a Eritreia foi dominada por duas potências coloniais: a Itália e, depois, o Reino Unido. Em 1952, a Eritreia, com o patrocínio da ONU, foi incorporada na Etiópia de Haile Selassie (curiosamente, para o movimento Rastafári, este governante é considerado um símbolo religioso, sendo um Deus encarnado, um messias redentor). Só depois de 30 anos de uma extremamente longa guerra de independência, encabeçada pela Frente de Libertação do Povo Eritreu, a Eritreia conquista, em 1993, finalmente, a sua independência. Este movimento de independência, tal como noutros países africanos, converteu-se em partido, a Frente Popular pela Democracia e Justiça, que governa o país com uma mão de ferro até aos dias de hoje.


O documentário que vi na RTP 3 era precisamente sobre as condições de vida das pessoas, que não são, como era de adivinhar, as melhores; isto é, de facto, morar na Eritreia é viver num dos estados mais pobres, e mais limitadores das liberdades básicas dos seus cidadãos. Vale a pena citar, na íntegra, o que a Human Rights Watch tem a dizer sobre a Eritreia: “O governo da Eritreia é extraordinariamente repressivo, submetendo a sua população a trabalho forçado e alistamento generalizado, impondo restrições à liberdade de expressão, opinião e fé e restringindo o escrutínio independente por monitores internacionais. Como uma ditadura de um homem só sob o presidente Isaias Afewerki, a Eritreia não tem legislatura, nenhuma organização independente da sociedade civil ou meios de comunicação, e nenhum sistema judicial independente. As eleições nunca foram realizadas no país desde que conquistou a independência em 1993, e o governo nunca implementou a constituição de 1997 garantindo os direitos civis e limitando o poder executivo. Desde a assinatura do acordo de paz com a Etiópia em 2018, o governo aumentou o seu envolvimento diplomático regional e internacional, mas não tomou medidas para melhorar a situação dos eritreus.”


Este documentário era precisamente sobre as condições de vida neste país, que também é conhecido por "Coreia do Norte africana" (nunca é bom sinal ser-se comparado com a Coreia do Norte!). Enfim, foram várias as situações que me deixaram estupefato, como as grandes restrições de circulação a que estão sujeitos os eritreus: por exemplo, não se pode sair da capital sem um visto. Há ainda grandes entraves ao acesso à internet, e o estado das prisões é simplesmente deplorável.





No entanto, o objetivo deste artigo não é apenas denunciar a atual situação de um estado onde as violações dos direitos humanos são o pão nosso de cada dia; queria também chamar a atenção para a quase ausência de cobertura mediática, por parte de órgãos de comunicação social internacionais, com fortes ligações a países ocidentais (como a Reuters ou a Associated Press). A meu ver, parece que este critério jornalístico não é o mais adequado. É “perfeitamente natural” existir uma intensa cobertura mediática da guerra da Ucrânia, contudo, apesar de ser “humano” darmos mais atenção ao que nos é mais próximo, não é desculpa para a falta de atenção que os media fazem ao caso da Eritreia, até porque num mundo globalizado o que afeta um pequeno país de África pode ter consequências noutras latitudes.


Noutro plano, também é curioso concluir que os países, que na ótica dos países do primeiro mundo têm interesses contrários aos do “mundo ocidental”, a título de exemplo, o caso da Venezuela, ou de Cuba. veem aumentar de forma substancial a cobertura mediática. Lembro-me, recentemente, do caso das manifestações em Cuba ou quando Juan Guaidó se autoproclamou Presidente da Venezuela, que tiveram uma ampla cobertura mediática, mas não houve nenhuma notícia dos média tradicionais sobre as MUITO mais graves violações dos direitos fundamentais básicos que se verificam na Eritreia.


Dominam nas agências de comunicação norte-americanas e europeias uma quase lógica clubística. Os países vistos pelo “ocidente” como adversários (China, Venezuela, Irão, Cuba) são significativamente mais escrutinados em relação aos direitos humanos do que os estados aliados do “ocidente” (Arábia Saudita, Paquistão, Egito). Pelo contrário, as repetidas violações dos direitos humanos pela Arábia Saudita são noticiadas, mas com uma muito menor intensidade. Quero deixar claro que todas as violações dos direitos humanos devem ser condenadas, mas não consigo perceber a diferenciação da cobertura mediática em relação a países alinhados com os EUA e aos seus adversários. Esta diferenciação é prejudicial e não tem fundamento para além da disputa geopolítica. O caso da Eritreia, nesse sentido, é peculiar, na medida em que se trata de um regime ditatorial “ideologicamente neutro”, no sentido em que não está alinhado nem com os liberalismos, nem com socialismos. O que é extremamente vantajoso. A falta de ideologia e, já agora, de petróleo, “ajuda” a perpetuar o regime. Se fosse um estado autoritário ideologicamente contrário ao ocidente, nesse caso, seria mais fácil para a comunidade internacional agir.



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