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Sofia Dias

Banco de Jardim



Estou a ir para casa, a calçada está molhada e escorregadia, venho de uma festa de aniversário, estou de mau humor e a ficar doente. Em parte, deve-se ao facto de ter contado mal os dias de lavar o cabelo e de o ter lavado duas vezes seguidas, o que não estava de todo nos planos. Saí de casa à pressa para ir para a festa e esqueci-me de metade das coisas que estavam na minha lista mental, intitulada de “coisas que tenho que pôr na mala para os anos da Rita”, título longo, eu sei. O meu cabelo ainda estava húmido, porque não tive tempo de o secar quando saí de casa.


Olho para o telemóvel e deparo-me com uma chamada não atendida, decido ligar de volta. “Estou? Ligaste?”. Digo, como se já não soubesse que, de facto, a Mafalda me tinha ligado. “Sim, sim. Não pude ir aos anos da Rita e por isso não te cheguei a ver, fiquei mesmo triste! Diz-me como estás, não ouço de ti há anos!”.


A Mafalda é minha amiga desde o secundário, gosta de pintar cada unha de uma cor diferente; a sua música preferida é o “Waterloo” dos Abba, porque a fez perceber a matéria de história; quando vê vídeos de bebés a dormir chora e quando se ri parece que se está a engasgar. O Rodrigo é o namorado da Mafalda, joga rugby e ri-se de tudo o que ela diz. Quando nos conhecemos, tentou explicar-me o porquê de eu dever investir na sua empresa, acha que pagamos impostos a mais em Portugal e é estoico, não morro de amores por ele.

“Estou bem, atarefada com o trabalho e tudo, por isso é que não tenho tido grande tempo para falar contigo.” Isto é, obviamente, mentira. Passo demasiado tempo a comer gelado de chocolate barato do supermercado e a ver maratonas de reality shows, que sei que me comem o cérebro.


“Devias descansar mais, só trabalhas! Andas sempre tão stressada! No outro dia, li uma coisa que dizia que por cada minuto que ficas ansiosa, perdes um de sono”. A Mafalda “pós-conhecer o Rodrigo” faz yoga e lê coisas destas na internet. “Sim, tens razão. Mas não é como se a minha vida fosse um remoinho, não há bebés a nascer, nem casas para comprar”. Ela assegura-me que no futuro vai haver, pensando que me está a tranquilizar, como se ter bebés ou comprar casas fossem requisitos para uma vida feliz ou, digamos, verdadeiramente adulta.


A Mafalda começa a falar de uma vela nova que comprou e de um amigo do Rodrigo que eu devia conhecer. Fico distraída durante cinco minutos com uma conversa entre duas mulheres, que julgo serem mãe e filha, que está a acontecer atrás de mim no passeio. “Então que dizes?”, pergunta-me, ansiosa. Não sei qual foi a proposta, mas respondo: “Sim, não sei- “. Ouço vozes do outro lado da chamada e a Mafalda interrompe-me: “Desculpa, não te queria estar a despachar, é que o Rodrigo acabou de chegar a casa e temos que começar a preparar as coisas para a festa dele amanhã. Tão perto da Rita, já viste? Que parvoíce! Esqueci-me de te convidar! Depois mando-te os detalhes!”. “Tudo bem, depois confirmo contigo, beijinhos!”.


Já vou a meio do caminho para casa, mas sinto-me tonta e decido sentar-me num banco de jardim. Tenho as bochechas coradas e estou a ferver. Olho para os meus pés e vejo as botas que a Mafalda me deu nos anos, rosa-choque. Quando me deu o embrulho, disse-me: “Acho que são mesmo a tua cara!”. Não eram, eram muito pirosas, mas foram prenda dela e uso-as regularmente.


Nunca tivemos uma discussão, apesar dos estereótipos que as amizades entre mulheres carregam – “Mulheres são muito problemáticas, ai, o drama todo que existe na amizade feminina! Só discutem e armam confusão.” Que treta! Se existem confusões é porque nos importamos muito umas com as outras. Somos verdadeiras confidentes, apanhamos o cabelo umas das outras quando a noite foi longa e o álcool demasiado. Compreendemo-nos mutuamente quando sujamos a roupa de sangue menstrual ou quando não somos levadas a sério quando estamos a discutir com homens.


Um dia, eu e a Mafalda fomos a uma festa. Eu quis ir à casa de banho e ela foi comigo, porque é assim que as raparigas fazem. Estava uma confusão lá dentro e muitas pessoas a falarem ao mesmo tempo. Perguntámos a uma rapariga o que se passava e ela disse “Estamos a dar conselhos à Joana sobre o que fazer em relação ao ex-namorado dela”, perguntei quem era a Joana e ela disse-me: “Não faço ideia, acabei de a conhecer”. Mas não importava saber quem era a Joana, o que importava era que alguém estava a ter problemas com o ex-namorado e estava na casa de banho de uma festa, a chorar. Fomos informadas, pormenorizadamente, da situação e tentámos aconselhá-la o melhor que sabíamos. Ela agradeceu-nos e deu-nos um abraço. Lembro-me de sentir esperança naquele momento, que se uma estranha me estava a abraçar e a dizer-me que me amava aos gritos numa casa de banho porca porque eu lhe tinha dito para não voltar para o ex-namorado tóxico, então é porque se calhar os seres humanos não são assim tão maus, como muitos acham que são. Nunca mais ouvi falar da Joana e não sei se ela chegou a voltar para o ex-namorado que controlava a forma como ela se vestia.


Lisboa estava calada e eu sentia que ia desmaiar. Tento focar-me num ponto à minha frente. Olho para o outro lado da rua e vejo um rapaz sentado num banco com um cão ao lado e penso: ele vai ter a tendência de rejeitar, por estarem ligadas ao conceito de feminidade construído pela sociedade, este tipo de amizades tão íntimas, este tipo de sensibilidade. Senti, subitamente, pena dele.


Aquilo que faz os seres humanos especiais, pensei, são as nossas tentativas de compreender alguém, de ser vulnerável e de partilhar com esse alguém coisas que estão escondidas nas gavetas, desarrumadas, poeirentas e mal construídas, no nosso cérebro. O rapaz que passeia o cão vai ter o seu caminho mais dificultado, vai ter dificuldade em ser vulnerável e em compreender os outros, tal como o filho dele, como o primo dele, como o amigo do primo, como o colega de trabalho, como o patrão, como o…


Olho para as horas, era tarde, estava cansada, nauseada e a cabeça estava a latejar. Levantei-me e fui para casa. Abri a porta, a custo, porque o trinco precisa de um jeito específico. Tirei as botas e enxotei-as para o lado. O telemóvel enche-se de luz e recebo uma mensagem: “Desculpa, fui muito brusca e despachei-te! Houve uma coisa que não te disse. Vou conhecer os pais do Rodrigo porque eles vêm à festa. Ajuda-me, por favor! Não consigo continuar com esta farsa de fingir que sou relaxada e descontraída e de que adoro fazer as respirações da meditação, na maior parte das vezes estou a pensar no que vou comer ao almoço! Estou-me a passar completamente! E se sujar a roupa que estava a planear usar? Ó meu Deus, e se sujar a roupa de outras pessoas? Sabes como sou distraída! E se não gostarem da maneira como a casa está decorada? E, o pior de tudo, Catarina, e se não gostarem de mim?”



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