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Mãos Flanantes

Carinho para o Cárcere

Querida -----,


Posso-te chamar filha? Será um tanto paternalista da minha parte, tal não quererias. Mas sou também da crença de que ambos precisamos de família. Hoje morreu a mamã. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: "Sua mãe morreu: Enterro amanhã.” Não podemos mais guiar-nos nela. O nosso tempo de criança passou. Já ninguém nos dá a mão quando temos medo.


E Deus, -----, eu tenho tanto medo. Nós, filha, vivemos num mundo tão estragado. Tenho de contar as refeições, ou posso acabar o mês sem elas – é o mercado a funcionar. Tens de contar os amores numa mão apenas, senão vão-ta partir e estrangular-te com a outra – patriarcado. Já é demasiado tarde para sermos inocentes. Mas tu queres tanto ser criança. E em mim acordas um tão profundo desejo de te nutrir, te ver crescer, e tornares-te a criança mais velha do mundo.


Mas sou apenas um homem. Não te consigo curar. Nasceste estragada, como eu. Não te posso salvar da dor de pensar, da burocracia de estar vivo, da condição triste de mulher, do monstro, do dia nem da noite, da arte e da beleza que nos assombra sempre que vemos um espelho ou escrevemos um verso, da merda da solidão que vem quando menos esperamos, especialmente quando é suposto estarmos felizes, porra.


Mas isso não me impede de tentar. Nem que tenha de partir a espinha dorsal ao Destino para o fazer vergar-se perante ti. Se alguém merece que o Destino a leve a conquistar o mundo, és tu.


Entretanto, eu dou-te colinho, faço-te festinhas no cabelo, lavo-to e digo “És bonita tal e qual como és, e a única coisa que precisas para o seres é seres tu mesma. E olha, meu amor, também estou a chorar. Foste tu, sabias? Com a tua arte. É essa a beleza da arte, ressuscitar uma parte de nós que achávamos há muito ter morrido. Não há coragem no cinismo inibido de emoções. Choro, meu bem, pela tua arte. Olha o pôr do sol, como ele é bonito. Há uma certa melancolia em saber que vai explodir, não é? Mas é tão bonito. Será radiante. Devias voltar a escrever uma crónica, tenho saudades delas. Não gosto de laranjas, mas claro que tas vou comprar. Por ti. Vou buscar bolinhos, fica aqui no banho, ok? Brinca com as bolinhas de sabão. Está tudo bem, compreendo-te. Está tudo bem, compreendo-te.


Está tudo bem, eu compreendo-te.”


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