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Writer's pictureJurpontonal Nova Law Lisboa

Carta a um Amigo Sobre um Episódio Insólito


Caríssimo Zé,


Há coisa de duas ou três semanas, deu-se o desfecho, que não hesito em classificar como trágico, de um dos episódios mais insólitos a que o nosso país já assistiu. De facto, foi um episódio de tal forma bizarro que ao narrá-lo a mim mesmo mais parecia estar a fazer o resumo de um romance do que a contar uma história verídica. Por isto mesmo, não te admires se estas palavras, em certos momentos, se assemelharem mais a um conto ou uma novela do que a uma carta: as coisas são como são, e não consigo descrevê-las de outra forma. Se me obrigasses a dizer-te, numa frase, do que se trata este episódio da vida nacional que te vou contar, acho que colocaria a questão nos seguintes termos: é a história de como amor e admiração podem nascer do ódio, do ressentimento, da vingança e da violência. Curioso? Vamos a isto.


Como sabes, o país tem andado em más águas. Não sei se tens acesso a notícias de cá, para além do que te vou escrevendo, mas a verdade é que atingimos o mítico fundo do poço. Greves constantes de serviços públicos e privados; manifestações todas as semanas nas capitais de distrito, e praticamente diárias em Lisboa; sindicatos novos a cada hora, com reivindicações e métodos mais radicais que os anteriores; violência praticamente endémica nas principais vias de cada cidade; destruição e depredação de monumentos e edifícios públicos (chegaram ao ridículo de profanar os túmulos do Panteão Nacional!); ocupas, a que a comunicação social carinhosamente chama “ativistas pelo direito à habitação”, a tomarem conta de bairros inteiros com a mais completa conivência da polícia e dos tribunais, e perante a total impotência dos proprietários… Enfim, um estado de coisas tal que só mesmo os mais ferrenhos anarquistas o podem considerar como “satisfatório”. No meio deste caos generalizado, no entanto, estão sempre os indivíduos. São eles quem mais direta e violentamente sofrem as consequências da desordem civil e política. O Bernardo Ferronha foi um deles.

Bernardo José de Oliveira Ferronha foi, durante parte substancial da sua vida, um zé-ninguém. Com o nono ano de escolaridade, trabalhava desde os dezoito numa loja estilo Maxmat, a acartar sacas e a conduzir uma empilhadora para aqui para ali. Pagava os seus impostos, não era casado e não tinha dívidas. Os seus vícios, o cinema e o tabaco, eram modestos. As paixões, a História, o Património e a Música, vivia-as serenamente, degustando as palavras, absorvendo o espírito dos lugares e sentindo a vibração das notas. Aos 29 anos perdeu o pai, e, uns meses depois, a mãe. Sozinho, vendeu a casa dos pais, a casa de infância, e mudou-se para um apartamento nos subúrbios de Lisboa, um sítio muito pequeno, mas muito asseado, com casa-de-banho, quarto e kitchenet. Em frente da única janela de que dispunha, com vista para um parque bem cuidado, instalou uma poltrona onde passava as folgas tranquilamente a ler, a ouvir música, e a fumar. Como vês, um tipo perfeitamente mundano, equilibrado, amante dos pequenos prazeres e apreciador da tranquilidade. No entanto, as coisas começaram a mudar, e de forma vertiginosa, nas semanas que precederam a sua prisão.

O rastilho de acontecimentos que perturbaram o equilíbrio da vida do Bernardo Ferronha e o levaram à prisão, começaram no dia em que o armazém onde trabalhava foi invadido. Até esse dia, em que, por coincidência, completou 37 anos, tinha vivido alheado da política e dos seus desdobramentos: não tinha televisão nem rádio, o telemóvel era de teclas, e os jornais não faziam parte da sua lista de leitura. Talvez por isso tenha ficado particularmente perturbado quando um grupo de jovens, armados de barras de ferro e correntes, entraram pelo armazém adentro, a gritar que exigiam a presença imediata do “patrão”. Quem era o tal “patrão”? Um homem dos seus 60 anos, manco, que tinha montado aquele negócio de raiz, e que assim que surgiu à vista dos jovens revolucionários (de facto, “jovem revolucionário” é um tanto redundante, porque só há dois tipos de revolucionários: os que são jovens e os que estão mortos) começou a ser violentamente sovado. O próprio Bernardo Ferronha deixou um testemunho escrito sobre esse acontecimento, entretanto publicado (talvez fosse conveniente enviar-to junto desta carta…), e que passo a citar:




O grupo de rapazes, ao verem o Sr. António surgir da porta do escritório com o seu característico aspeto de autoridade natural e patrística, atiraram-se a ele como os conspiradores a César. Quando terminaram a sua barbárie, aquele a quem desdenhosamente chamavam “o patrão” estava estendido no chão, ensanguentado e indefeso. Um dos rapazes, talvez o líder, começou a proferir um discurso, previamente ensaiado, mas de retórica e conteúdo panfletários: “Trabalhadores: como sabem, o patronato tem-vos explorado ao longo dos últimos anos. Ao abrigo da crise, cortam-vos salários e limitam-vos direitos. Eu e estes meus camaradas estamos determinados a acabar com isso, e a fazer cumprir Abril! Por isso mesmo, viemos aqui anunciar-vos que foram convocados para fazerem parte da União Revolucionária dos Sindicatos da Grande Lisboa e Vale do Tejo!”. O discurso prosseguiu por o que me pareceu uma eternidade, com apelos a isto e àquilo, e com a característica pobreza dos jargões revolucionários sempre presente. A parte verdadeiramente importante para a maioria dos presentes, incluindo o pobre do Sr. António, foi deixada, como de costume, para o fim: ao que parece, toda aquela agitação tinha fundamento numa denuncia anónima de que naquela empresa o patrão consumia os lucros em aumentos salariais próprios, ao mesmo tempo que pagava ordenados exíguos aos funcionários. Naturalmente, a base para aquele simulacro de revolução proletária era falsa: o Sr. António não só não tinha quase lucros nenhuns, como não poucas vezes tirava do próprio bolso para manter as contas em dia, ordenados incluídos. Mas, evidentemente, os revolucionários não estavam interessados em descobrir a verdade. Já vinham de cabeça feita. Por isso mesmo, declararam a empresa ocupada até haver aumentos salariais, com dispensa dos trabalhadores. Escusado será dizer que não demorou muito até que estivéssemos todos desempregados.

As semanas seguintes foram intensamente transformativas. Desempregado, e algo abalado pelos acontecimentos recentes na sua vida pessoal, Bernardo Ferronha, um homem até aí mais ou menos isolado do mundo, desabrochou para a realidade das coisas. De manhã, no caminho para a loja do cidadão e para o centro de emprego, ganhou o hábito de parar num quiosque que tinha perto de casa e de aí comprar o jornal. Lia-o calmamente, todos os dias, enquanto aguardava que chamassem a sua senha. Quando terminava, e se ainda não tivesse chegado o seu número, ficava em silêncio, a ouvir as conversas alheias. Também sobre elas deixou o seu testemunho:



Sentado nos desconfortáveis bancos de metal e plástico da sala de espera, aborrecido de morte, ia ouvindo os queixumes daqueles que, tal como eu, esperavam a sua vez. “Hoje tive de trazer o carro outra vez, por causa da greve dos autocarros”, dizia um rapaz jovem e bem vestido, a um homem com ar de marginal, que retorquia, irritado: “Nem me diga nada! Estes gajos é greve dia sim, dia não! Juro-lhe, se apanho um dos grevistas, faço-lhe a folha!”. O jovem bem vestido acenou a cabeça lentamente, em aprovação. Quando finalmente consegui emprego, numas obras que se estavam a fazer na Praça do Comércio, encontrei o mesmo tipo de queixume e de raiva fervilhante um pouco por todo o lado. “Estes gajos dos comboios”, disse ainda outro dia uma senhora, no metro, “era pô-los todos em linha num paredão e corrê-los a tiro de G3!”. A sua interlocutora acenou vigorosamente com a cabeça, e eu dei por mim a acenar também, embora de forma disfarçada. É notável como a raiva, fruto da injustiça, é contagiante!


É notável, sim senhor! Cinco dias por semana, descia o Chiado e a Rua Augusta até ao trabalho e via os efeitos das ocupações de casas e das greves violentas: gente insuspeita, com posses, lançada para a indigência, sem hipótese de trocar de roupa, de tomar um banho, de fazer a barba ou de dormir em cama a que pudesse chamar sua. Mais do que ver estas pessoas, sentia-as. Sentia o ódio latente nos seus olhos, a raiva nos gestos, a necessidade de uma desforra nas palavras. E quanto mais passava por elas, mais se identificava com a sua causa, mais o calor destemperado da fúria crescia no seu âmago. Mal sabia que estava a poucos dias de a soltar. Certa noite, ao voltar para casa, percebeu que não conseguia abrir a porta. A chave entrava na fechadura, mas não rodava. No livro que tenho citado, o Bernardo Ferronha escreveu:



Um arrepio desagradável percorreu-me a espinha. Será?, pensei eu, os meus olhos a turvarem-se com lágrimas de frustração. Do interior do apartamento, uma voz esgazeada deu-me a confirmação do que eu mais temia: a minha casa tinha sido ocupada. “Esta casa está ocupada, especulador do caralho! Põe-te a andar!”. Quis ter arrombado a porta. Quis ter entrado pelo apartamento adentro, e espancado da forma mais violenta possível quem quer que lá estivesse dentro. Quis ter arrastado os corpos inertes escada abaixo, e tê-los atirado para o caixote do lixo da esquina. Mas não fui capaz. Senti-me impotente. Fiquei uns cinco minutos a olhar para a porta, incrédulo. Depois despertei da minha letargia e fiz o que muitos fazem: dirigi-me para as barracas da Baixa, a procurar abrigo.


Não sei se chegaste a saber deste detalhe que o Bernardo Ferronha refere, mas quando a crise dos ocupas se agudizou, a CML montou umas barraquinhas coletivas, na Baixa Pombalina, para albergar os espoliados. A ideia original era as chamadas “Barracas da Baixa” acolherem as pessoas por uns dias, uma semana, no máximo, até se conseguirem ver livres dos ocupas. Infelizmente, muitos ficaram lá meses, e alguns ainda lá estão.

No dia em que foi preso, Bernardo Ferronha estava de folga. Era agosto, e fazia um calor infernal em Lisboa, com as temperaturas a chegar aos quarenta graus. Sem nada para fazer, decidiu preambular pela capital. Por todo o lado, se viam desalojados, de caras tristes e humilhadas, alguns pedindo esmola. Depois de passar em alguns alfarrabistas, começou a pensar no seu apartamento ocupado, e cresceu em si uma raiva e uma coragem que decidiu aproveitar. Foi enquanto subia o Chiado, em direção ao metro, que a sua vida mudou.


Precisamente no momento em que passava junto à Igreja de Nossa Senhora dos Mártires, ao Chiado, saíram de dentro dela três rapazes e um padre. Dois dos rapazes carregavam a cruz do altar, enquanto o terceiro segurava o religioso, lívido, pelo colarinho. Os que seguravam a cruz, atiraram-na escadas abaixo e começaram a saltar em cima da imagem de Cristo. O que segurava o padre ria-se à gargalhada, como um animal selvagem. Horrorizado, o pároco chorava, implorando misericórdia. Ato contínuo, os dois primeiros afastaram-se da cruz, e o terceiro empurrou o eclesiástico violentamente contra a imagem de Nosso Senhor, lançando-se depois sobre ele, esmurrando-o violentamente.


Eu, perdendo a consciência do que fazia, e deixando o ódio acumulado e cego tomar conta de mim, agarrei numa pedra solta da calçada, e dirigi-me ao que agredia o padre. Quando o rapaz virou a cara para mim, confuso, assestei-lhe com a pedra em cheio na boca, fazendo esguichar sangue para a escadaria de mármore. Não sei quando golpes lhe dei a seguir, quando ele já estava deitado, e provavelmente inconsciente, mas tremo ligeiramente ao recordar-me do som que os ossos do rosto faziam ao partir-se. Quando me acalmei, a cara do terceiro agressor não era mais do que uma massa sanguinolenta, completamente irreconhecível. Antes que pudesse fazer o que quer que fosse, três gendarmes, vindos não sei bem de onde, lançaram-se sobre mim e algemaram-me. Essa foi a primeira de muitas noites em que dormi na prisão.


Chegamos, caro Zé, ao momento mais surreal desta carta. Peço-te, antes de prosseguires com a leitura, que releias as palavras com que escolhi resumir esta narrativa. Já o fizeste? Pois bem, com elas em mente, vamos continuar.


Não é difícil imaginar o estado em que ficou o Bernardo Ferronha depois de ir parar à prisão. Um tipo cuja vida, até há uns meses, se resumia num eterno percurso casa-trabalho, trabalho-casa, encontrava-se, de repente, a aguardar julgamento por homicídio, com risco de ir de cana durante dezasseis anos. Ao fim da primeira semana, e depois de duas reuniões com um advogado contratado pelo Estado – um tipo novo, nervoso, acabado de sair dos bancos da Faculdade -, já pensava em matar-se. Passava os dias a deambular dentro da cela, na biblioteca, no pátio e no refeitório, como um fantasma. Afastava-se dos outros reclusos, e os outros reclusos afastavam-se dele. Ao fim do primeiro mês, no entanto, quando já tinha todo um plano delineado para se suicidar, as coisas mudaram: chegou-lhe uma carta.


Sem quaisquer familiares próximos vivos, estranhou. Examinou bem o envelope antes de o abrir, procurando sinais que pudessem identificar o sítio de origem. O papel em que a carta tinha sido escrita fora arrancado de um caderno pautado. O Bernardo Ferronha transcreveu-a na íntegra para o seu livro:



“Sr. Ferronha,

Vi o que fez. O seu nome e o seu rosto estão em todos os jornais. A sua vida privada foi completamente exposta à devassa pública. Chamam-lhe extremista e agente do ódio. Os de sempre falam na necessidade de moderação e de acalmar os ânimos, chamam-lhe louco. Para mim, e para muitos com quem tenho falado, você é um herói. Fez o que todos devíamos fazer, mas não temos coragem. Você é um exemplo, e a sua prisão horroriza o mais básico sentido de justiça! Sei que esta carta não lhe serve de muito, mas ao menos que lhe dê animo para lutar contra esta corja em tribunal. Tem o meu apoio e amizade incondicionais!
Um grande abraço e muito ânimo,								

Luís Gonzaga”.


Esta carta que leste, a primeira de muitas, resume bem o sentimento que as ações do Bernardo Ferronha produziram no país. Enquanto os jornais pintavam um assassinato macabro, com motivações políticas, de um jovem idealista às mãos de um bronco iletrado, as pessoas, de um modo geral, viam alguém como elas que, farto de ser maltratado pelo “sistema”, reagiu da forma como podia e sabia. Este apoio, expresso, no início, por palavras tartamudeadas em surdina nas mesas dos restaurantes e nos balcões dos cafés, foi ganhando lentamente uma dimensão nacional. Houve um acontecimento, no entanto, que, muito mais que todos os outros, fez com que este apoio deixasse de ser envergonhado e passasse a ser explícito: a manifestação de homenagem ao André Filipe, o rapaz assassinado pelo Bernardo Ferronha.


O evento, organizado pelo Governo e por uma lista colossal de sindicatos de que o jovem fazia parte, começou no Saldanha e era suposto seguir até ao Chiado, à Igreja dos Mártires. Nesse dia, lembro-me bem, pairava em Lisboa um silêncio tenso, o tipo de silêncio que, no contexto doméstico, antecede uma discussão acesa. Na dianteira da manifestação iam o primeiro-ministro, o líder da oposição, e os principais líderes sindicais, bem como a mãe do André Filipe, que seguiu chorosa e agarrada ao Presidente da República, também presente, o caminho todo. Ao longo do percurso, foram-se ouvindo apupos e insultos da população, controlada a custo pelos elementos da polícia. No entanto, quando a manifestação chegou ao Parque Eduardo VII, as coisas saíram de controlo. Os muitos desgraçados que tinham ficado sem casa devido aos ocupas fizeram uma espera aos manifestantes, com pedras arrancadas da calçada em riste. Do confronto que se seguiu, ficará para a História a foto do momento em que o primeiro-ministro, amedrontado, leva com uma pedra em cheio na nuca, e desmaia para os braços do Presidente da República. Mas esta manifestação foi meramente o começo.


Um pouco por todo o país, as pessoas, imbuídas deste novo espírito de luta, e, porque não, de justiça, começaram a imitar os feitos do Bernardo Ferronha. Por todo o lado, começaram a surgir corpos esventrados e dilacerados de sindicalistas e políticos. Tornou-se habitual, nos jornais, vir noticiado que “x ativistas pelo direito à habitação foram mortos a tiro pelo proprietário do imóvel que aqueles ocupavam”. No Norte, a tentativa de invasão de um complexo fabril desencadeou uma autêntica batalha campal, que só a intervenção do exército conseguiu domar. Uma espécie de contrarrevolução estava em marcha.

Enquanto parte do país se digladiava, deu-se, em Lisboa, a primeira sessão do julgamento do Bernardo Ferronha. À entrada do tribunal, aguardavam centenas de pessoas, com cartazes a exigir a sua libertação. Durante a audiência com o coletivo de juízes, os trabalhos tiveram de ser interrompidos três vezes, devido ao barulho ensurdecedor dos manifestantes. O próprio Ferronha descreveu a situação nos seguintes termos:



O advogado de acusação, pago a peso de ouro pelos sindicatos, e, suspeito eu, por alguns partidos, estava permanentemente a olhar para a porta, muito ciente da possibilidade de os manifestantes poderem, a qualquer momento, irromper pela sala de audiências. Já o advogado que me representava, pelo contrário, e pela primeira vez, parecia muito seguro de si, sorrindo a todo o momento, e garantindo-me, em surdina, que “isto já cá canta”.
Quando saí do tribunal, fui aplaudido apoteoticamente pela multidão presente, que exibia cartazes com o meu rosto. Entrei na carrinha celular ao som de um cântico de apoio que passei a declamar, baixinho, à noite: “Bernardo, honrado, sabe que és amado!”.


O julgamento demorou pouco mais de onze meses, um tempo recorde. Segundo soube, e estas informações vieram de colegas muito bem posicionados, houve muitos telefonemas de figuras políticas para membros do coletivo de juízes, a exigir que o julgamento fosse feito o mais célere e pacificamente possível, de modo a matar de vez o caso. A cada sessão apareciam mais pessoas, mais apoiantes, e eram necessários mais reforços policiais. Na derradeira sessão, o presidente do coletivo de juízes leu a sentença com indisfarçável aspeto acabrunhado, lançando olhares nervosos a todo o momento para a porta da sala de audiências e para os membros da polícia presentes. Ao fim de três horas de sessão, e com uma argumentação extraordinariamente duvidosa do ponto de vista jurídico, declarou que o Bernardo Ferronha estava ilibado. O recém-inocentado descreveu assim a reação da multidão:



Ao sair do tribunal, livre de algemas pela primeira vez em muito tempo, fui recebido da forma mais calorosa possível pela população que me aguardava. Havia-os de todas as idades, homens e mulheres, negros e brancos. A uni-los, um sentimento comum de que, naquele dia, tinha sido feita justiça. Foi enquanto falava com aquelas pessoas, uma a uma, que percebi que não podia voltar à vida que tinha antes. Tinha de fazer alguma coisa, tentar mudar o país. Esforçar-me por tentar devolver àquelas pessoas parte do amor que elas me dedicavam. 


Foi na senda deste último pensamento que o Bernardo Ferronha se decidiu dedicar à política. Unindo uma série de grupúsculos de extrema-direita que o idolatravam, formou o “Esperança”, um movimento político cuja plataforma se baseava, por inteiro, em restabelecer a ordem no país, punir os ocupas e os invasores, restringir o direito à greve, e criar as condições legais e de segurança necessárias para o relançamento económico do país. Prontamente condenado por todos os partidos do regime e pelos jornais, este novo movimento organizou comícios em todo o país, arrastando atrás de si centenas de milhares de apoiantes. Um desses comícios merece destaque: o da Praça do Comércio em Lisboa. Discursando do cimo do arco da Rua Augusta, como faziam os dirigentes políticos do antigamente, Bernardo Ferronha deixou uma promessa aos milhares de apoiantes que se tinham juntado na Baixa para o ouvir falar: “Não vos abandono!”. Mal sabia que a História estava prestes a colocar um ponto final na sua meteórica ascensão.


Durante uma arruada no Porto, três dias antes das legislativas, um sindicalista, Aurélio Barros, disparou cinco vezes sobre Bernardo Ferronha, à queima-roupa. O óbito foi declarado no Hospital de São João, após cinco longas e tensas horas de cirurgia. No dia seguinte ao anúncio, violentas manifestações assolaram o país, pedindo justiça. A carrinha onde seguia o assassino, que estava a ser transferido para Lisboa, foi abalroada e assaltada por apoiantes do “Esperança”, que raptaram Aurélio Barros e o mantiveram cativo em local incerto até há poucos dias, quando foi divulgado um vídeo em que este último listava todos os mandantes do crime. A lista incluía líderes sindicais e políticos, e o plano geral era de tal forma intricado e absurdo que mais parecia urdido por mafiosos da Cosa Nostra, com direito a fugas simuladas e trocas de identidade. As consequências desta informação não se fizeram esperar: uma explosão de violência que culminou na invasão do Parlamento, e na retirada do governo para a Madeira.


Escrevendo-te meros três dias depois desta invasão, ainda não te consigo dizer quais serão os resultados longevos deste caos. Não estarei a exagerar se te disser que o nosso país esteve à beira de uma verdadeira rutura da ordem política e cívica. A lei marcial foi decretada, e o exército está nas ruas. As manifestações que ainda vão existindo, de um lado e doutro, são rapidamente suprimidas. A paz vai sendo restaurada a pouco e pouco, ainda que com mão de ferro.


Para ti, caro Zé, que lês este resumo algo atabalhoado da nossa história recente, poderá parecer fácil encontrar o epicentro de tudo isto. Permite-me desiludir-te dessa presunção. De facto, e olhando de fora, tudo parece óbvio: a desordem tem origem num homem cuja maldade foi interpretada pelos seus pares, de forma distorcida, como uma virtude a ser imitada. Superficialmente, pode parecer assim. Nenhuma pessoa racional duvidará que o que tornou a existência do Bernardo Ferronha num assunto público foi um ato que só alguém tresloucado é capaz de cometer, independentemente do quão mortificado tenha ficado a posteriori. Mas para entenderes verdadeiramente as origens da nossa situação presente, e o amor e devoção que os nossos compatriotas dedicaram a este homem, tens de fazer a ti mesmo esta perguntas: porque é que o amaram? Porque é que, num assassinato absolutamente doentio, os nossos concidadãos viram um ato de libertação? Porquê? Se analisares a fundo estas questões, chegarás a uma resposta praticamente comum: tudo isto aconteceu, e os protagonistas reagiram como reagiram, devido à desordem que precedeu a desordem. Os nossos males não começaram com o assassinato do André Filipe. Começaram muito antes, de maneira insidiosa, como um tumor, e foram crescendo até contaminarem a sociedade com a raiva e o ódio. O Bernardo Ferronha foi apenas mais um dos contaminados. Aquilo que ele fez poderia ter sido feito por qualquer outro. A divulgação pública da sua existência não foi mais que um processo de autoconhecimento coletivo de toda uma nação. Foi por isso que as pessoas o amaram e o veneraram. De repente, viram alguém exatamente como elas a fazer o que, no seu íntimo, elas também desejavam. Foi por isso que sentiram que podiam fazer justiça pelas próprias mãos, a justiça que lhes tinha sido negada. Assim, a violência gerou violência, a desordem gerou desejo de ordem que redundou em mais desordem, e tudo terminou com uma mão de ferro, que ninguém pediu e em quem ninguém confia, a esmagar-nos coletivamente enquanto nação.


Para terminar, deixo-te um pedido, amigo Zé, que estou certo de que irás acatar: reza à Providência que me proteja a mim e à minha família, bem como a todos aqueles que não desejam mais que viver em paz com o seu semelhante. Obrigado.


Um abraço fraterno e sincero,


Alexandre Martins

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