top of page

Clube de Leitura - “Cidades Invisíveis”, Italo Calvino - textos

Okänd - Letícia Paes


É com fascínio que se descobre Okänd, a pequena cidade perdida, em que tudo é nada, e o nada é tudo. Ao atravessar a divisa do infinito, há cheiro de canela dos cafés e padarias e flores dos jardins e campos. Dizem que experiência mais confortante só se vê unicamente na casa dos avós, que moram no seu centro. Todos os habitantes são praticantes da religião hyggecismo, esta é praticada nas grandes bibliotecas e florestas que deságuam em prósperos rios. Cedo ou tarde descobrimos o famoso magnomanual, descrito em linhas de Times New Roman em papiro, escritos com lápis e acompanhados de uma borracha, sempre que necessário. Sua capa macia tem escrita: Janteloven. Esta cidade soa como uma canção do Sinatra, profere como o Jorge Amado sem a violência dos Capitães da Areia, é mais luminosa que Paris e mais romântica que Veneza. Suas casas têm mais cores do que a aquarela de Toquinho. Andamos por lá sem sentir aperto no coração.Ela é uma pólis com camadas como uma cebola, mais que tudo, uma experiência, como descobrir Atlântica, impossível de desvendar-se por completo em uma só tentativa. Poderia então ser descrita como uma espécie de Salvador com Lisboa, um cruzamento lusitano, um bolo de casório com três andares, um Monte Olimpo. Talvez esta cidade foi o paraíso Maia nunca descoberto, ou talvez, é uma junção de tudo já visto e experienciado. Okänd é, acima de tudo, braços abertos que sussurram nos corações: bem-vindo à casa.



Vidi - António Subtil


Vidi fora uma cidade amada noutros tempos, mas não mais. Rodeada de céus violetas e aroma a rosas, foi cunhada de fama de paixões. Peregrinos passeavam pelas pontes, e pintavam os nomes das paixões em todas as paredes. “Pedro, o meu primeiro amor”, em tons de prata na praça do mercado. “Vasco, volta vivo”, vi eu a vermelho na mais velha avenida. “Sofia, sofro e sinto tanto”, cravado nos sinos dourados das catedrais. 

Tantas preces pedidas e desesperos expostos, que os poços se encheram de moedas, e os rios secaram, o sal de lágrimas tudo o que restou. Na calçada da ponte mais nova, alguém escreveu com as cores do arco-íris: “Vidi, a encarnação do amor”. As cores são já tão ténues. Nada resta da última letra. 

Vidi é agora um deserto. O deserto de Ouzer: o deserto da doença.



Bauci - Mello


Rodeados por nuvens – num manto branco, numa intensidade vazia, perfeitamente impalpável e que se desfaz quando se estica a mão. Crianças tentam capturar um pouco delas em largos jarros de vidro – duram pouco mais que uns segundos. Uma efemeridade que quem vive no solo nunca sonhou. Os habitantes de Bauci dão se ao luxo de tocar nas nuvens. Mais ninguém alguma vez o sentiu na pele.

De que serve isso se não conhecem o solo? O cheiro de relva acabada de cortar? A terra molhada pela chuva? Enterrar uma bota num pedaço de lama e suspirar? Uma mão a tentar conter todos os grãos de areia dentro dela? O sussurro do mar contra as rochas? Uma coleção de olhos observa-nos de cima.

Querem conhecer o que está longe. Querem tocar na terra. E nós queremos tocar nos céus.


Mas nem todos olham para nós. Alguns nem se dignam – olham em frente, desprezando o que somos, e o que temos. Perfeitamente contentes com o que têm. Ao ponto de rejeitar o que desconhecem. De olharem por cima, e nunca para baixo. Orgulham-se das suas nuvens, da sua paisagem de algodão.

Não precisam de mais.

Porque descer é uma incógnita. A qualquer momento, as longas andas cor-de-rosa que suportam tudo podem dobrar-se, e se deslocar. Procurar outras nuvens. Procurar outros céus. E quem se deu à curiosidade de descer, pode bem nunca mais regressar. Por isso, dizem, é melhor ser só um olho. E não conhecer a madeira, a cortiça, as folhas e a terra. Fiquemo-nos pelas efémeras nuvens. Estão em casa.



Pirra - Raquel Osório de Barros


Sobre ela nada sabia - ou, pelo menos, foi isso que vim a descobrir quando por lá passei. As cidades são quem nelas vive e os nomes têm o doce problema da fidelidade a quem querem nomear. 

Imaginei-a alta e imponente - muralhas de uma era perdida que evocam um passado glorioso e a austeridade de um monarca que viu o seu lugar ocupado pelo herdeiro como manda a tradição. A praceta central com um poço mostraria como o critério da eficiência tinha sido ali aplicado: defesa e manutenção das necessidades. Os habitantes, atarefados, viveriam numa comunhão obrigatória, circunscritos ao espaço de proteção delimitado pelo muro, sem ver o mar que batia na muralha majestosamente, era destino apenas ouvir as ondas ao deambular no fim da tarde. 

Quando finalmente a vi na realidade, dei pelo nome a destruir a cidade que imaginara. Pirra era antes um conjunto de casas muito afastadas, agrupadas em ruas retas e ordenadas. A comunhão em que se baseava desapareceu para dar lugar ao individualismo dos seus habitantes - não havia poço, havia apenas, visível aos olhos de uma viajante, o armazenamento privado de madeira para aquecimento da casa no inverno. O que mais me entristeceu foi que, em vez das ondas, o que se ouvia era o som mecânico e industrial das bombas hidráulicas que alimentam a energia daquelas casas. 

A cidade sempre tinha sido assim, é evidente que o seu nome já não podia significar mais nada que não aquilo. A cidade estoica com o poço central e as casas contíguas existirá e procurarei achar um nome que a ela se adeque. Como pude achar que era Pirra?



Fepo e Vésper - Sofia Dias


Todos os poemas do mundo falam sobre elas.


Todas as letrinhas existentes, juntas em  palavras, sussurram entre frases e parágrafos, a história do fim de Febo, a cidade do  Sol. 


Peguemos num exemplo concreto, na palavra “gato” - sabemos, empiricamente, que o  “g”, o “a”, o “t” e o “o”, tiveram a seguinte conversita: 


Diz-se por aí, em sussurros, que um miúdo veio a Vésper. (o T deita-se transfigurado, o O só olha para o soalho e o A aspira algum ar pesado) G, bateste com a cabeça? Ele claramente  faltou às aulas de história…. Calem-se e deixem-me acabar. Dizem que o miúdo esticou uma perna e aterrou cá, agora parece uma espécie de ponte, sabem? Como aquela que há aqui na  praça, tem uma perna lá e outra cá. Então, mas ele não fica com cãibras? Ah, sim, T, um  miúdo de Febo virou pastilha elástica e anda a mandar bitaites cá, mas o que é preocupante é  se ele não está com dores na virilha. Odeio o teu sarcasmo, continua lá a tua história… O F  disse-me que este tal de Benjamim tinha um monstrinho a morar nas costelas dele. Pronto,  agora é que o gato torce o rabo. G, isso já não existe, estás a ser tonto. Os de lá já não têm  essas coisas no corpo. Ai, mas este de certeza que tem. Ouve-se que o monstro andava a saltar  tanto lá dentro que fez com que o rapaz tivesse um espasmo numa perna e viesse cá parar. E, agora, preparem-se para o melhor de tudo, a cereja no topo do bolo, os italianos no tiramisu 


o miúdo. está. apaixonado. por. uma. vesperina.  

—————————

“Não tem de se parecer com nada” - disse ela, enquanto passava a mão pelos caracóis acaramelados  de Benjamim. - “Os nossos cabelos despenteados também não se parecem com nada. Nem as nossas  mãos em movimento.” - Vespi mexeu as mãos rapidamente à frente dos olhos dele.  

“Estamos rodeados de coisas abstratas. Sei que em Febo não se liga ao abstrato, liga-se ao que se  vê, ao que é palpável, ao que é reconhecível. Mas, pensa, quando pintamos alguma coisa, pintamos  uma fatia fininha da realidade, contudo, ninguém nem nenhuma coisa é só isso. Não há nada que  não seja a soma do que foi, do que é e do que será. Então, aqui, em Vésper, o que tentamos pintar é  a soma das fatias todas ao mesmo tempo.” 

“Ao mesmo tempo?”  

“Sim, não há outro tempo.” 

”E consegue-se?” 

“O quê?” 

“Pintar isso tudo?”  

“Sim, mas não se parece com as coisas que vemos. Porque a realidade não é o que vemos. É o que  aparece num quadro como este.”  

“Isto é uma fotografia da realidade?”, diz ele apontando para o céu. 

“Podemos dizer que sim.”  

“Onde é que achas que ele aprendeu a pintar? Em Vésper?”  

“Quem? Kadinsky?”  

“Sim.”  

“Em todo o lado” 

“Ensinas-me a pintar como ele?”  

“Não sei…” 

“Eu não me importo de pintar às escuras! Por favor!” 

-Composição, Vésper, 07:00. 

———————————

“Vespi, o que é aquela cadeira?” 

“Aquela cadeira está farta de ver rabos e de todos se irem embora. É uma colecionadora de traseiros  temporários, mas nenhum fica para sempre, levantam-se todos e ela nunca mais os vê.” 

“Sabes dizer-me o que é que a minha T-shirt me está a dizer?” 

“Está a dizer que não encontras o buraco para meter a cabeça todas as manhãs, enfias sem querer  numa manga e depois tens um ataque de claustrofobia. Também me está a dizer para me beijares a  mim, Benjamim.” 

- Sala de estar da cadeira e do beijo, Vésper, 03:17. 

——————————————


(Cresce mais uma perna ao T e este começa a parecer o número pi, cresceu mais uma cabeça  ao O e virou um 8 e o A virou-se ao contrário e parece um V) 

Isto é muito atípico. Muito tempestuoso. Muito onírico.  

Companheiros.  

Sim, G? Ai, ele está gelado! Sente-lhe a testa! Estás bem, G? 

Já repararam que não faz luz há muito tempo? 



Baunilha - Inês Fonseca


Se as cidades podem ter nomes como “Venda das Raparigas” e “Rabo de Peixe”, porque é que não pode existir uma “Caramelo com Amendoins” ou uma “Baunilha”? Ergo aqui ambas. 


Cogito ergo sum, assim como o pensamento da Baunilha a faz “erguer”. Uma cidade completa, plena, elevada sob o poder do mais bonito raciocínio humano. 


Sempre que alguém pensar que se esqueceu de algo, uma árvore nasce; sempre que alguém pensar em dizer algo, música ecoará das nuvens, fazendo o sol brilhar com mais força; sempre que alguém pensar amar, chocolates cairão nos colos, e os corpos se unirão em prol do conforto e do calor. Há sempre a certeza de que se mora onde se devia.


As bruxas que habitam Baunilha colocam nos seus regaços os sentimentos de todos, apoderando-se daquilo que poderia levar à desordem. Roubam-nos no cerne da escuridão das pálpebras fechadas em repouso, não deixando sequer a semente da possível sensação. Os Baunilhocas nunca souberam (e nunca saberão) que tiveram a hipótese de sonhar a cores. 


Despejam para dentro dos caldeirões os burburinhos dos corações palpitantes e das pupilas dilatadas. Borbulham sob as verdes chamas as emoções de todos os locais. Mexem e remexem com as grandes colheres de pau, da direita para a esquerda, e observam as cores que cada adição cria. Começam sempre com as tristezas, que tingem o sentido licor de azul, um azul escarlate. O paradoxo da Baunilha. Terminam sempre com as alegrias, que por sua vez avivam um amarelo purpúreo. O paradoxo da Baunilha. 


Nunca se vê nos céus o resultado da fusão da questão. Nunca se vê o resultado da chuva com sol, da tristeza com alegria. Ambos existem individualmente, mas um arco-íris só figura por 5 segundos no caldeirão das bruxas, e nunca acima das cabeças dos Baunilhocas. 


É uma cidade funcional: tem uma rede de comunicação estável, nunca acontecem desgraças, os moradores não se queixam. Têm saneamento, ruas agradáveis e muitas portas onde bater para uma simples conversa. Mas não têm vida. Não existem enquanto seres, nem se podem afirmar como tal. Para ser, é preciso ir além do cogito, entrar no espetro do sinto. E sentir que se pensa não basta. Pensar que se sente muito menos. Os habitantes ainda não chegaram a exemplares conclusões, porém, deixa-los-emos beber as suas chávenas de chá, comer as suas bolachas, e questionar um dia: Porque é que o céu não tem cor?


Enquanto isso, Baunilha deixa-se repousar no fundo das nossas papilas gustativas após a ingestão de um crème brûlée. Ou, não tão óbvio e mais perspicaz, um arroz doce. E quando fecharmos os olhos, as bruxas cumprirão as suas tarefas. Há que ter garras para aprisionar os sentimentos e lançá-los aos céus por força própria. E quando virmos um arco-íris, saberemos que há um corajoso entre nós, alguém que conseguiu conservar as suas poções longe do olhar das bruxas. 


91 views

Recent Posts

See All

Lápide

Comments


bottom of page