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Ofélia (clube de leitura)

Clube de Leitura - "Flecha", Matilde Campilho - textos (parte I)


INÊS FONSECA


Noite. Silêncio no quarto. Uma só pessoa dentro da divisão, na companhia das suas memórias. Os anos passam, as feições mudam, vêm as rugas, mas aquilo que se guarda a sete-chaves, a sete-chaves fica. Idades congelam no tempo, e na arca frigorífica permanecem os desenhos, os escritos, os bilhetes, as fotografias…


O monstro surgiu no papel, e para a memória passou. Pobre monstro. Nem faz ideia da importância que carrega para o rapaz. Numa só folha de papel, ele consegue observar o que fora e o que dentro de si continua a viver. Basta um pequeno lamiré direcionado ao monstro, para que o rapazinho que o desenhou retorne a casa. Para que pelos corredores se ouçam as imitações rascas de ruídos de motores de carros e motas; para que haja um nova luta pelo fim da sopa na tigela; para que os chupa-chupas pós-dentista tenham um sabor mais doce. Tudo para que as cores do mundo ao seu lugar se posicionem, para que menos um humano seja daltónico.


Com certeza, depois de dada por terminada a obra-prima, o seu autor se ergueu das suas pernas-à-chinês, e com rapidez, passou por cima do mikado formado aleatoriamente pelos lápis de cor, e em direção aos seus pais foi. “MÃE! Olha o que eu fiz!” “PAI! Gostas? Fiz-lhe um bigode igual ao teu!” Conhecendo a essência de progenitores babados como conheço (e ainda bem que assim o foi/é), o monstro antes de figurar na parede do rapaz, possuiu papéis importantíssimos no teatro elaborado pelos demais desenhos presentes no frigorífico.


Criou-se, ali, naquela tarde enfadonha, um melhor amigo de papel e carvão colorido. Aquele dia, numa cápsula intemporal, ficou. O rapaz foi crescendo, sob olhar atento do seu monstrinho. Ia ao frigorífico buscar gasolina para o seu corpo, e deparava-se com o ser que criara. Só lhe faltava falar. Dizer: “Devias pedir desculpa à tua mãe, ela só quer o melhor para ti” ou “Tenta ajudar mais os teus pais” ou “Já ligaste aos teus avós hoje?”. Há certas coisas que passam despercebidas no dia-a-dia do menino, afinal 24 horas não chegam para tudo, amanhã também é dia. Mas, e se não for? O monstro vai continuar pendurado pelas orelhas algures? Os avós vão continuar a preparar o almoço perfeito, que deixa qualquer um a rebolar de uma cheiura prazerosa? Tantas questões que surgem para a passagem do tempo, que infeliz ou felizmente, não é problema para o monstrinho. Os anos passam por ele, vê o jovem em adulto se tornar, e só ele continua naquela folha, depois de muitos piratas e cowboys enfrentar. Bem é precisa a reforma, mas uma reforma conjunta, onde pode discutir com o rapaz como foi o seu dia, ou o que se passou entre ele e os seus amigos… O monstro não faz parte dos amigos do menino. Um dia, fez, mas esse dia não é interminável. O autor seguiu com a sua vida, e por cima da criatura, outros posteres mais atuais foi colocando. Às tantas, a vista periférica do monstro eram folhas de papel, já não fazia jus ao seu bilhete de fila da frente para o dia-a-dia do jovem (talvez precisasse de reclamar um bilhete novo).


O monstro pensa que o seu fim chegou. Apercebe-se que não se lembra da última vez que viu a cara do rapaz, ou da última vez que com ele partilhou lágrimas e risos. Porém, ele não pode desistir agora. Não agora, monstrinho. Aguenta firme só mais um tempo. No silêncio da noite, o rapaz vai lembrar-se do que fora. Dos seus hábitos estranhos, que teve de abandonar pela aceitação da sociedade; dos seus truques de magia (fracos, mas, ensinados pelo pai); dos seus gostos incomuns (como comer pão com banana); e até do nome dos seus antigos melhores amigos. E dentro desta lista, tu vais aparecer com um sublinhador amarelo fluorescente. Vais gritar, sem usar a tua voz “EU ESTOU AQUI! E SEMPRE ESTIVE!”. E dos olhos do rapaz, lágrimas escorrerão por ver o que perdera, por concluir que a sua única existência, nem a si retornará. A ti, ele se agarrará, e em súplicas, por entre murmúrios, dirá “Perdoa-me, monstro”.


Tão pouco o menino sabia quando o desenhou, como sabe agora. Só há uma certeza na vida, e ela foi a certeza que ele precisava para a energia e a ingenuidade infantil recuperar.

Desde então, o monstro (bastante viajado, deixe que se diga), do frigorífico à parede foi, e de momento, encontra-se na carteira do rapaz, que sempre que a abre, sente o coração a aquecer com a presença do seu eu pequenino.

Guardemos um lugar à lareira para a única pessoa que devemos orgulhar: o nosso eu que pensa que a Dora nos ouve (e é, simplesmente, cega); o nosso eu que gosta de espetar o dedo nos restos de massa de bolo, e lamber até ao osso; o nosso eu que tinha genica suficiente para acordar mais cedo que os galos, só para ver o que quer que estivesse a dar no zig zag; o nosso eu que dizia “XAUuUUuu” aos aviões que nos sobrevoavam. Está na altura de recuperarmos os nossos monstrengos, e sobrepô-los aos posters dos tenistas de ‘81.



ISABEL COSTA


Porque é que haveremos de fugir ao que nos dá liberdade?


Aquilo que nos faz ganhar asas e voar para um qualquer patamar apenas imaginado nos mais belíssimos filmes; aquela nossa parte mais movediça que nos obriga a aspirar ser algo mais, que nos rouba o chão e pinta no seu lugar uma escadaria para o desconhecido; enfim, aquelas partículas inovadoras que compõem a nossa coragem.


Porque é que haveremos de apagar essa parte inebriante do nosso ser e a tingir de medo?


Porque é que nos haveremos de tornar meros corpos lívidos a flutuar na nossa (in)existência nos escassos anos que a temos? Porque é que haveremos de deixar a pessoa repreensiva que vive em nós (leia-se, o cadáver anêmico em que nos tornaremos) vencer o rapaz com a fisga no combate interno pela nossa personalidade? E transformar esta nossa parte cintilante num banal herói incompreendido, refugiado na pele de aventureiro acriançado que sucumbiu à loucura?


O medo do ignoto estampa o selo da loucura em tudo o que seja minimamente díspar, marcando-o como hostil e rebelde; porém, a própria História já ditou que é apenas debaixo da asa desta excentricidade que o mundo se altera e evolui. É naqueles que se recusam a seguir o status quo que o futuro emerge e só com estes poderá ele ser uma realidade.


Assim, acho que só resta uma nota final:

Meus amigos, se dizem que viver já é, só por si, ser louco, porque é que haveremos de ficar por aí? Eu digo que mais vale almejarmos à grandeza (e, claro, à pura insanidade) Para quê viver com medo do desconhecido se é nas nossas singularidades que encontramos as cores belas que o céu esconde, se é nelas que ouvimos as vibrantes sintonias dos jardins escondidos, se só assim somos capazes de saborear os frutos deleitosos que os nossos próprios preconceitos nos vedam?


Quanto de nós encontramos no rapaz com a fisga? E na senhora que o repreende?



ANTÓNIO SUBTIL


Eu, provavelmente,

Fodia uma árvore.

Já mijei numa.

Ambrósio, chamei-a.


Porque não?

Não havia casa de banho

Era escuro e

Vai morrer o mundo.


Fodia uma árvore.

E fodia um mar,

E fogo e terra-pedra

Turma e família

Império além-porra.


Tudo fodia.

Porque não?

Já fodi tudo:

Fodi a minha vida.


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