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Clube de Leitura - "Flecha", Matilde Campilho - textos (parte I)


RAQUEL OSÓRIO DE BARROS


De acordo com o dicionário, mágico significa alguém que faz magia, que, apesar do pleonasmo, é tudo aquilo que é necessário para saber sobre ele e para compreender esta história. Propositadamente ele é deixado em papel como alguém cuja única característica é a sua ocupação, o que faz com que ele seja reduzido a isto, a esta essência.


O mágico viveu toda a vida tendo como garantida a sua magia, praticada por ele desde criança, apesar de não depender inteiramente de si, era aquilo que o definia da maneira mais profunda, aquilo que quando tudo o resto falhava estava presente, em todo o momento e a todas as horas. Este momento quotidiano da sua vida, nada tem que ver com a forma como a sua magia se produziu, como é que ele se tornou de facto mágico ou até mesmo os traumas da sua vida, uma odisseia perdida que só ele consegue salvar e todas esses mentiras que nos contam para nos fazer acreditar que a casualidade não pode conter em si própria beleza porque nem só de grandes obras se faz a gente.


Fechando o plano nele, neste preciso hoje, independentemente do dia em que estiver a ler isto, por que no fundo o tempo não existe, de facto, neste universo em que o homem está preso, ele vai retirar a sua varinha do bolso do casaco de couro com a mão direita, a mão que usa para fazer tudo, e depois passará, num gesto mecânico, a dita varinha para a mão esquerda. Ele continuará infinitamente a repeti-lo, como Sísifo outrora fez à sua pedra, e assim ficará congelado neste loop, nesta chaga, da troca de mão até ao fim dos seus dias. Talvez o mágico nunca tenha pensado de facto nisto e cogite por ventura que este gesto tão inocente que o possibilita de exercer a sua essência é meramente questão do acaso, mas nunca iremos saber de facto se isso aconteceu e por isso, resta-nos filosofar acerca do assunto, como responsáveis que agora somos por ele.


Com o mágico, aprendemos que a essência, este pedaço de alma tantas vezes discutido por pensadores, pode estar apenas contendida num simples gesto do quotidiano, como entrar num rio que altera como o nosso animus. No entanto, ao contrário de Heráclito, Matilde Campilho confere-lhe uma natureza estática de um gesto repetido infinitas vezes que não se altera nem é pensado até ao limite, sendo meramente instintivo.


No fundo, penso que a autora traduziu, de uma forma bonita e subtil, que muitas vezes aquilo que é de facto a nossa essência pode fugir completamente ao controlo do próprio individuo que a detém, o que remete para a crença de que aquilo que nos define é tão interior que nem sequer nós mesmos o podemos controlar. Bem sei, esta ideia é profundamente desconfortável, mas, para acrescentar ainda, tenho de dizer que esta pode ser, e é, em muitos casos, uma contradição aos nossos instintos naturais, veja-se o mágico que, sendo destro, só consegue fazer magia com a mão esquerda, a mão não dominante que acaba por subjuga-lo a si própria.


Reconhecendo que a missão a que a autora de propôs será para sempre discutível, por se encontrar no campo das matérias inefáveis, gostei de quão vago é o texto, porque assim, ao observar um ser unidimensional num ato quotidiano, é possível ao leitor pensar no que há de mais profundo em si. Tal confirma a tese de que os grandes autores são aqueles que conseguem explicar coisas altamente complexas com ideias simples e, pelo caminho, usar palavras bonitas.




SOFIA DIAS


Uma menina de 4 anos brinca no quintal da avó. Tem um vestido branco e às bolinhas vermelhas. O cabelo está adornado com um laço a combinar que, a muito custo, a mãe colocou na cabeça. A resistência ao penteado fez com que ambas chegassem atrasadas aos respetivos compromissos – a mãe tinha uma reunião de trabalho e a menina tinha de estar no restaurante onde servia bolinhos de lama, confecionados com terra originária do oásis da mãe da mãe. Assim que passou pelo típico portão azul, Leonor foi servida com iguarias típicas de avós, os bolinhos com canela e açúcar; o mel; o chá a ferver que requeria assopros e muitos “Ai, avó, a minha língua dói!” para ser bebido; os sorrisos de açúcar seguidos de “Luísa, filha, tens a boca toda suja, limpa lá isso!” e, claro, os repetitivos avisos de que a menina estava demasiado lingrinhas e que devia devorar tudo o que havia na mesa.


Agora, a avó está a ler um livro na cadeira de plástico branca, com as pernas cruzadas, uma mão a apoiar o queixo e os óculos na ponta do nariz. Os bolos de lama da menina estão no forno. Esta distrai-se com um formigueiro que lhe passa ao pé dos pés. Agacha-se. E, com os seus dedos gordinhos pega numa formiga e come-a. Não sente nada. Foi como tivesse engolido ar. Escolhe a próxima vítima e leva-a à boca. Nada sente, novamente.


“Leonor, o que é que estás a fazer? Não comas formigas, filha. Isso não se come.”


A menina levanta-se e vai ter com a avó. “Avó, porque é que não se pode comer formigas?”


“Porque são bichos, amor”


“Mas, avó… Não percebo…. Sabes que a mãe diz que eu tenho bichos maus a sussurrar-me ao ouvido quando faço disparates?”


“Ah sim. Esses malandros.”


“Isso quer dizer que… Quer dizer que os bichos maus me mandaram comer os bons?”




TIAGO MONNI


Gostei bastante, reúne diversas temáticas: a especialização no trabalho que vem da prática reiterada de Dave já ter feito tantas peças ("Já perdeu a conta"), depois sabemos da sua relação de subordinação para com os homens brancos: mesmo que ele faça todas as peças, na maior perfeição possível, serão usadas para fins de outros, dos homens brancos, o que lhe tira o sentimento de domínio sobre as obras, pois não consegue reivindicá-las como suas. E vê-se uma diferença de perspetivas: para Dave são obras de arte, enquanto para os homens brancos são apenas formas de armazenamento daquilo que consomem diariamente.


Contudo, vemos que Dave sente a necessidade de escapar deste ciclo em que cria as obras para depois lhe serem retiradas, pelo que elas finalmente são consideradas suas, imbuídas do significado que lhes remete. Assim, dá vida à sua obra, que passa de um mero instrumento de armazenamento para uma arma de libertação. Agora o jarro tem nome, é vivo, não é como qualquer outro. E o significado é a busca de um sentido para ele próprio, pela busca das suas raízes, do seu povo.


Não sabe onde estão e nem como encontrá-los, mas é pela subversão da sua subordinação aos outros que encontra um ponto de partida.


Então, basicamente, Dave procura um significado para ele próprio. Além, claro, da existência de uma forte crítica social (mas para isso acho que preciso de mais contexto do livro).




MELLO


sem escolha sem ser estar isolada

em busca de força para me extrair o coração

empurram-me para o lado

empurram-me em frente

mais ninguém tem a minha coragem.


não tenho um que seja meu

tenho de ter o dele

sim. ele não o merece

o que é teu deveria ser meu.


bandeja da cor da lua,

senhora dos espelhos,

soldada mudada,

nada mais que uma peça

mas alguém terá que fazê-lo.


o teu coração, negro e quente,

sempre a bater,

faca na minha manga,

esperando pelo sol poente.


no nosso jogo eterno sou peão

mas no final da linha irei mudar

crescer, recuperar, superar,

fazer de mim cavaleiro,

fazer de mim rainha,

mandar abaixo o teu bispo

e a cabeça dele empratar.


mesmo que te arrastes pelo chão,

por ti não tenho miserdicordia,

pelo teu peito adrento minha mão,

e das tuas tripas um colar.


magoar-te-ei como magoaste as minhas,

como me magoaste a mim,

da minha ira divina,

pedido da peça final.


eternamente não ha nada há espera de mim,

sem estar aqui sozinha,

sozinha, quebrada, segregada,

com um novo coração.


e este poema está profundamente inacabado, sofia.




INÊS BRAZÃO


Quinze metros acima do nível do mar, uma dona de casa acorda de manhã e flutua até à máquina de café. Numa sucessão de movimentos, que desempenha de forma automática, retira a quantidade usual de pó e coloca-a no suporte apropriado para o efeito. Carrega num par de botões e, por artes mágicas, o pó une-se à água e a água une-se ao pó, resultando num incomparável líquido acastanhado. A dona de casa aguarda enquanto o líquido enche a sua caneca, exalando um odor do qual ela não se imagina cansar. Assim que a máquina cessa o seu funcionamento, retira a caneca e dá um golo. Longo. Sequioso. Aproxima-se da janela da sua cozinha. Segurando firmemente a caneca com as duas mãos, perto do seu rosto por forma a sentir o delicioso aroma, observa as movimentações na sua rua. Vê a vizinha, na sua faixa etária, a entrar no carro para ir para o trabalho. Lembra-se da sua irmã gémea, astronauta. Alguns quilómetros acima do planeta Terra, algures no espaço. Ouve passos, e depois alguém, o seu marido, a ligar o rádio. Do aparelho provém um som familiar, que a embala nas próprias memórias. Era uma das canções favoritas da sua irmã. Sente muito a sua falta. Interroga-se como será a sua manhã no espaço. Sem gravidade, e sem o odor reconfortante de café acabado de fazer.


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