top of page
Rita Horta

Creio que me escasseia a espontaneidade

Tento e persisto no tentar, mas ainda no agora ela me foge. Talvez, o mais provável (mas que recuso a aceitar) é que nunca a persigo de verdade.


Esculpo letras sob a bandeira da intelectualização dos devaneios que não assumo, mas sou incapaz de lhes dar os respetivos nomes de família, localizações e quaisquer especificidades que me aproximem da situação relatada, como se manter tal frieza de algo adiantasse. O devaneio persiste, e eu na tentativa em vão de uma escrita floreada. Persisto na pontuação (quase) certa, na gramática mais correta que consigo fabricar no momento - sem prejudicar o meu modo de expressão - em nunca finitas correções, em escrever num teclado antes de cravar para a posteridade a tinta da minha caneta preferida no meu caderninho prateado que comprei a meios de uma adolescência atormentada. Ainda agora o faço, incapaz de romper com o vício da tentativa de perfeição literária. Ai, o ultraje de escrever diretamente no papel que ficaria riscado! Ai, assumir aqui uso Lakudo 0.7 desde que descobri a sua existência na papelaria do liceu! O ultraje que seria personalizar textinhos que não chegam nem aos olhos do meu público mais próximo. Escrever a quilómetros da minha realidade, como se disso beneficiasse, como se adiantasse, como se um alguém fosse analisar tais construções sintáticas.


Queria ser como aquelas pessoas que escrevem “A fez-me B, isso magoou-me porque C. Sinto x” - objeções principais: i) recuso-me a aceitar que a minha vida seja típica assim, que os meus sentimentos se resumam à lei causa-efeito da física e demais ciências concretas e que não seja tudo mais complexo; ii) descreve-lo, assim, tornaria a situação real (como se deixasse de o ser por eu cometer omissões); iii) fazê-lo seria abdicar da minha esperança de que estas palavras tenham valor para além daquele que lhes dou. Devia aceitar que não sou o próximo Pessoa, que estes devaneios não têm valor. Devia perder o desejo literário, o desejo de emanar poesia, o desejo da arte. Devia ser só eu, orgulhosamente. Devia assumir que as palavras que aqui ficam não são mais que confissões longas e doloridas da minha adolescente incurada (ou será criança?) - mas persisto, e persistirei, nestas frases que perdem sentido com a falta de detalhes. Não me parece natural dá-los, mas sobretudo dói-me. Talvez partilhar o meu tipo de caneta predileta seja demais (devia apagar??). É que magoa. Creio que torna a situação real, e não o quero. Quero mantê-la longe, noutro planeta se possível, por favor, e deixa-la sossegadinha no pretérito em que ocorreu. Que ela me largue, por favor! Que ela fique lá, e eu aqui, não génio, com o desejo implícito de ser génio irreconhecido, ignorado, mal tratado por um mundo cruel. Separadas, assim, talvez possamos encontrar a paz última que prometeu a sacra igreja, que essa seja estóica como RR e bucólica como Caeiro, já que nem isto consigo decidir, e que não me consuma o pouco que me sobra. Que a separação me deixe sã, que eu tanto preciso. Que me deixe viver, que me tire as amarras, que me liberte desta prisão que sempre fui eu, da minha memória enviesada para o traumático. Que não seja a morte, que essa não chega para o tanto que descrevi. Que não seja dolorosa, que dores já tenho de sobra. Que seja rápida, que o cansaço já me pesa. Ou que seja, só, se possível for; se não, aqui ficarei, amarrada à insuficiência que sou e serei, até ao fim dececionada com tal.



43 views

Recent Posts

See All

Lápide

Comments


bottom of page