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Tiago Monni

Crescer: um olhar atento ao coração


Francisco, carinhosamente chamado pelos pais de Chico, sempre foi um menino extremamente resguardado, assim como muitos da sua idade: circunscritos por uma bolha estanque de inibição, constituída pelo distanciamento em relação aos outros e pelo refúgio em meios impessoais, protótipos de uma suposta interatividade social, para “fazer passar os dias”. Em sua escola, mantinha conversas com um ou outro, sempre portando uma forte armadura social, sem externalizar os seus sentimentos, pois, para ele, bastava abrir-se com os pais, o que de si só já exigia um grande esforço. Neste mundo tão confuso, as faces o assustavam; contactá-las e encarar reações em diferentes medidas seria muito perigoso. "Então e se fizessem uma cara feia? E se discordassem mesmo da maior frivolidade que eu poderia inventar? É muito arriscado, prefiro estar acompanhado dos meus brinquedos e videogames, que nunca me surpreendem". Apesar da nítida introversão, os pais satisfaziam-se e permaneciam estáticos, pois Chico sempre foi muito bem comportado, como todo o pai gosta: "te recompensamos pelo seu bom comportamento, compramos mais um jogo ou o novo lego". E assim permaneceu até aos seus 16 anos, nesta constante ociosidade, caracterizada pela profunda solidão disfarçada pela imagem do menino bom e obediente. Todavia, a perspetiva se altera drasticamente: nesta altura da vida, surgem as dúvidas profundas (ou "perguntas últimas") quanto ao seu lugar no mundo e ao sentido final da existência e, com o ingresso à faculdade no retrovisor, Chico, incentivado pelos pais, decide adotar outra postura: “Será que essas faces são mesmo tão assustadoras?” "Que tal dar uma chance às pessoas?"


Então, ao chegar à faculdade, procurou logo dar-se com todos. Prática-solução de um passado tímido e sossegado, caracterizado pelo olhar aos próprios pés e pela pura inatividade. De fronte com qualquer pessoa, esforça-se ao máximo para usar as palavras mais certeiras e usuais no intuito de não a deixar escapar. É assim que, paulatinamente, constrói um forte cimento relacional sobre o terreno baldio e inócuo que lhe é reminiscente. Recorre aos meios mais fáceis e inofensivos ao seu dispor (hiperboliza sentimentos fugazes, acelera processos, põe uma estrelinha verde no Insta, etc) na virtude de conservar essa fulgurante sensação que lhe é inédita. Nesse sentido, no regresso à casa, o seu maior alívio é ter encarado as faces de forma corajosa, porém com a segurança de que não saiu por aí a tocar em corações, pois esses, ainda, são inatingíveis.


Está a apreciar intensamente essa vida de contar cartas e registar o novo inventário. Afinal, quem não se vislumbra com a repentina metamorfose da solidão diária para estar sempre rodeado por quem nomeia como amigos? Ergue-se então a pergunta: "esta metamorfose, contudo, é apenas repentina ou também apressada?" Para Chico não importa, pois é como se tivesse nascido outra vez: sai de seu invólucro solitário assim como saiu do ventre de sua mãe e está agora a ver a vida com o mesmo olhar fascinado que portava quando se abriu ao mundo em uma sala de um hospital.


Nesse sentido, completamente encantado por estar a “ver a vida pela primeira vez”, opta por adotar uma simples e otimista interpretação: retira do pouco que sabe de cada figura que recentemente conheceu (essencialmente a face) a conceptualização mais solene e pura do Ser Humano, fruto de uma pretensa gratidão por terem, de certa forma, preenchido imediatamente o vazio terreno de sua alma, isto é, o terem conduzido ao seu renascimento para o Mundo. Ademais, mesmo que pense que está iludido ou demasiado inocente, não lhe será importante, devido à proeminência desta inédita e confortável abordagem.


Atentamente a esse ponto, temos nós o poder de conceder juízo sobre como Chico está a abordar a sua vida? Penso que não. É comum que optássemos por subir no estandarte de nossa arrogante experiência pessoal, constituída por todas as nossas deceções, incertezas, inseguranças e pequenas ambições, e julgássemos o menino, atribuindo-lhe uma pueril ingenuidade, dissonante de sua já não tão tenra idade, mas afinal, qual de nós, benditos experientes da vida, nunca teve a vontade de retornar à própria infância para escapar desta sóbria e crua realidade, que tanto nos machuca e nos pauperiza? Qual de nós nunca desejou retroceder a um tempo em que não tínhamos nem sequer a audácia de conhecer as pessoas suficientemente para nos dececionarmos? Esse é um sentimento corrente, um aparente escapismo das corriqueiras situações que tanto nos afligem. Precisamente, é o olhar cuidadoso às fotografias da infância que sempre podem nos animar, provocando-nos um distintivo sorriso inocente em meio ao diário esmorecimento.


Todavia, mesmo que não seja completamente honesto de nossa parte julgar Chico, é possível aduzir que a sua prática não é duradoura e, ainda por cima, não leva a um correto realismo, no melhor, colabora com uma efêmera utopia. Considerar os indivíduos apenas ao nível de sua epiderme significa obstar-se completamente à verdade inextirpável de que todos os indivíduos atribuem sentimentos aos factos que os rondam consoante o seu coração, ao passo que corrobora a realidade premente de que os mesmos se revestem das mais sofisticadas armaduras para acobertar as suas emoções (provenientes dos sentimentos) no sentido de produzir imagens-tipo para a tácita anuência de terceiros.


Todos os indivíduos percebem, em certos momentos decisivos, de escala temporal indeterminada, que a força interior que nos conduz exige um olhar mais complexo, que não se satisfaça simplesmente com estas faces produzidas e comuns, mas que foque nos corações ferventes determinantes à nossa conduta (é o “tudo bem?”*, a preocupação intimista com o outro). Isso para elucidar a existência de duas diferentes realidades, uma mutável remetente ao exterior e outro singular e imensurável, ligada ao nosso coração ("interior"), que devem ser cuidadosamente analisadas e distinguidas, partindo, em adição, de um olhar revestido do mínimo preconceito, a "pobreza de espírito", o que nos leva a igualmente valorizar a conduta levada a cabo por Chico na faculdade, caracterizada por ser pura (não superficial) e dissociada de preconceções.


Portanto, o "bom e comportado" rapaz a qual nos detemos, agora que é corajoso o suficiente para encarar as faces, deve aprender a olhar através delas, para descobrir uma bonita realidade. Esse passo não trivial é indispensável, pois, apesar de desafiador, (devido às faces cada vez mais intimidantes) e não-linear, é fulcral para o crescimento do Ser Humano, elemento capaz de considerar a realidade de forma total. Assim, finalmente, o Chico torna-se Francisco!


“Não tenhas medo da quebra de expectativas! O teu amadurecimento requer algo além do mero reconhecimento de sorrisos fáceis e fisicalidades intencionalmente dóceis, grita por sentir o fervor do coração, mesmo que te queimes".


 

*A própria expressão refere-se à busca da totalidade da realidade de seu interlocutor, apesar de que banalizou-se, sendo dita automaticamente e descarregada de seu significado original.


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