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E eu até nem me queria chatear

E eu até nem me queria chatear.


Não queria mais ser aquela rapariga revoltada, que leva a fúria na alma e os insultos na ponta da língua, enquanto percorre um chão de injustiças. Eu não queria mais ser essa pessoa, a que ninguém quer ouvir e vos faz revirar os olhos - ou melhor, até ouvem, desde que o assunto não se torne muito sério…

Eu não queria mais ser a pessoa que o mundo faz chorar de agonia e raiva - mas eu não consigo ser outra.


Eu não consigo ser outra enquanto temos colegas que não comem para conseguir continuar a estudar.

Eu não consigo ser outra enquanto temos colegas que não dormem a pensar em como vão pagar a renda.

Eu não consigo ser outra enquanto temos colegas que já não conseguem continuar a estudar. Que são obrigados a desistir dos seus sonhos, a fazer as suas malas e a voltar para casa com os olhos em lágrimas, que são obrigados a escolher entre estudar o que querem e estudar o que está mais perto de casa, para não se sujeitarem aos preços das rendas, e que são obrigados a viver com mais sete desconhecidos e a não jantar recorrentemente para pagar as propinas, que tanto lhes custam.


Eu não consigo ser outra. E talvez nem queira ser.


As bolsas são indeferidas, os preços da renda aumentam, a inflação consome a comida no supermercado e os estudantes cá ficam - mais uma noite em casa, com os amigos à espera da saída que não pode voltar a acontecer (o horror a olhar para a conta da última vez…) e mais um fim-de-semana a ponderar a ida a casa - por um lado, não se gasta em comida nesses dois dias, por outro, tem de se pagar os bilhetes da viagem (afinal, há quantas semanas é que já não vejo os meus pais?)


Não é fácil ser universitário - em nada se parece com os filmes do American Pie ou com as viagens luxuosas que vemos no instagram - é um constante roer de unhas e um puxar de cabelos, são contas a acumular e noites sem dormir, é ir para casa no meio de uma tempestade, porque não há dinheiro a sobrar para um uber, é escolher entre jantares de aniversário de amigos e comer massa com enlatados três dias por semana - não é fácil ser universitário.


O mundo já não parece estar aos nossos pés, nós é que parecemos estar aos pés deste - vendem-nos a doce mentira de que o nosso futuro é o que fizermos dele e depois apresentam-nos os condicionantes… o teu futuro é o que quiseres que ele seja, se arranjares forma de te sustentares durante estes quatro anos, o teu futuro é o que quiseres que ele seja, se os teus pais venderem o carro para pagar a tua renda e as tuas propinas, o teu futuro é o que quiseres que ele seja, se nasceres na casa certa… pois, desculpem avisar, mas a grande maioria de nós já perdeu a lotaria social - o teu futuro é o que quiseres que ele seja, se lá conseguires chegar…


Então e as bolsas? Gritam os que, felizmente, nunca tiveram de escolher entre comer e pagar a renda ou entre trabalhar e dormir - aqueles cujo coração não começa a acelerar e os suores frios a chegar quando são convidados para uma festa. As bolsas não chegam -

nem o seu montante para quem dele precisa, nem a quantidade para todos os que dela necessitam. É triste, mas é o que temos: um Estado Social de Direito em que a função da “justiça” das Finanças Públicas foi passada por cima e em que o procedimento administrativo só vê números, facilmente manipuláveis, e não vê histórias - não vê o desespero dos indeferimentos, nem a indiferença de outros tantos deferimentos.


E eu até nem me queria chatear… mas, se calhar, só não está chateado quem não está a ver.



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