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Errância

Todos os anos se escrevem textos sobre este dia. Nada do que escreverei aqui será novo, talvez a maneira como o farei estará ligada intrinsecamente à forma própria da minha escrita, mas nem isso considero especificamente inovador. Mesmo assim, sinto necessidade de escrever algo. Anteriormente, disse que o ato da escrita me era uma questão de imposição. Uso-o para me impor. É talvez uma jogada sádica, mas é a única coisa que sinto que consigo agarrar realmente pelas mãos.

 

Atrevo-me a adivinhar que a impotência que sinto perante certos aspetos do mundo que não a escrita se deve um pouco/muito ao facto de ser mulher. Reconheço que o meu síndrome de impostor tem laivos de misoginia internalizada. Contudo, ambiciono fazer da escrita a prova de que é possível encontrar poder na minha feminilidade e não numa versão distorcida de masculinidade. Não pretendo copiar dicionários do léxico da típica liberdade masculina tóxica, traduzi-la, estudá-la, aproveitar o que me interessa e deitar fora o resto. Não pretendo apagar a minha Mulher para poder sentir um vestígio de poder fictício momentâneo, coisa na qual o movimento feminista cai vezes e vezes sem conta.

 

Chega de justificações e introspeções. Vamos ao que interessa. Em Portugal, em termos normativos, legislativos, penso que o caminho tem sido feito. A maior parte da mudança está feita (sim, é importante pensar acerca de como a lei do aborto está feita para promover o contrário do seu propósito. Há problemas.), mas o machismo parece estar mais presente na nossa cultura em si. A sociedade parece não acompanhar a lei. É percetível a olho nu que o Patriarcado, para além de ser um sistema em termos institucionalmente ditos, perdura em micro-agressões, em misoginia internalizada, em condescendência, em apalpões, em um homem explicar o que é percetível a uma mulher, em vitimização masculina desmedida, em trabalho doméstico feminino excessivo, na tendência de encaixar mulheres brilhantes na categoria de “mulher brilhante” e não “pessoa brilhante” (o masculino sempre pareceu o padrão de excelência e normalidade, será a mulher constantemente o “outro”?)...

 

Mudar mentes demora mais do que aprovar legislação. O nosso trabalho mais doloroso é esse. E é o trabalho mais doloroso, porque é o que apresenta mais resistência. Atualmente, acompanhando também o crescimento do Fascismo na Europa, têm surgido discursos retrógrados e bafientos no que toca aos direitos das mulheres na opinião pública, como reação aos progressos feitos até agora.

 

Atrevo-me a dizer que esta resistência, não só se deve ao facto da forma não tão certa como temos adotado o movimento, não só se deve à falta de educação prestada aos homens relativamente a este tema, mas também à inevitável ideia de que a defesa pelos direitos das mulheres ameaça a ideia de superioridade masculina, tão psicologicamente intrínseca na maior parte dos homens, que, se já mudada institucionalmente, como se tem feito, muito facilmente poderá também ser ameaçada nas relações interpessoais.

 

Quando certos homens insistem na inferioridade da Mulher, estão mais focados em sustentar a sua superioridade do que na suposta crença de que a feminilidade é algo inferior. Escreve Virginia Woolf: “A vida para ambos os sexos – e olhei para eles seguindo lado a lado no passeio – é árdua, difícil, uma luta perpétua. Exige coragem e força gigantescas. Mais do que tudo o resto, talvez, sendo nós criaturas de ilusão, exige confiança em nós mesmos. (...) E qual a maneira mais rápide de gerar esta imponderável qualidade, que no entanto é tão inestimável? Pensando que os outros são inferiores a nós. Sentindo que temos uma qualquer superioridade inata – pode ser riqueza ou estatuto ou um nariz direito ou o retrato de um avô pintado por Romey – (...). Donde a enorme importância para o patriarca, que tem de conquista, que tem de dominar, que tem de sentir que um grande número de pessoas, nada menos do que metade da raça humana, é por natureza inferior a ele.”.  

 

Para os nossos companheiros masculinos rejeitarem o próprio sistema que os beneficia em desproporcionalidade face às mulheres, têm de encarar a dura realidade de que são o que mais temem ser – “um bicho da terra tão pequeno”, um mero ser mortal. Chega de heróis. Ouçam-nos. Procurem conhecer.

 

Quanto a nós, há que matar o homem machista que vive dentro das nossas cabeças. Resta-nos ser mais compreensivas umas com as outras. Resta-nos não julgar a roupa que outras têm vestida. Resta-nos não ser cúmplice de comentários misóginos por parte dos homens que fazem parte da nossa vida. Resta-nos revoltar-nos quando uma amiga nossa é violentada. Resta-nos tentar ignorar a voz dentro da nossa cabeça que nos diz a todo o custo que não merecemos fazer o que fazemos, trabalhar onde trabalhamos, ganhar o que ganhamos.

 

Pratiquem feminismo como acharem ser o mais correto. Manifestem-se. Mudem leis. Eduquem. Votem. Deem um abraço gigante à vossa avó. Discutam com o vosso pai à mesa. Leiam. Conversem com um bom copo de vinho (as discussões feministas mais complexas e interessantes que tive foram em jantares banais com as minhas amigas). Escrevam. Façam-no como quiserem, mas não se deixem ser convencidas de que isto acabou. De que já não vale a pena.

 

O anseio pela liberdade, ainda que sempre bem retratado em teoria de género, encontrará a sua rebeldia, o seu maior teor revolucionário, entre as estrelinhas, entre a saia de uma avó, entre tintas de uma tela, entre o vermelho de uns lábios, entre o dançar frenético num bar. Entre a errância. Entre a errância sobretudo. (Que palavra bonita!) E, na minha forma preferida, entre um A e um B.

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