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Anónimo

escritos de um cemitério sentimental

[Lisboa, dezembro, 2021]

Era dia de chuva. Era dezembro, lembro-me que era dezembro por ter o frio a cortar-me o pescoço.

Não guardo este dia na memória com muita nitidez. Aliás, não guardo muitos dias teus com muita nitidez. Andámos e vimos Lisboa com chuva.

Não me lembro como chegámos lá. Apenas me lembro de sentar no chão de pedra e de ver os patos a passar. Tirei-lhes uma fotografia.

Hoje, essa fotografia não existe. Procurei por ela e apercebi-me que já não existe. Nem tu.


[Lisboa, setembro, 2022]

Era setembro. Era dia de calor de setembro. Deitámo-nos na relva. Vimos os patos. Seguiram-se poucos dias idênticos, monótonos, secos. Ficámos por aí.


[Lisboa, julho, 2023]

Muda o poema, mas o sujeito poético é o mesmo.

Pergunto-me quantos cantos deste cemitério estarão por assombrar. Se o chão não fosse de pedra (outra vez a pedra?), qualquer vivo poderia ver pegadas marcadas de uma ponta à outra. Mas, na realidade, o chão é de pedra. Só os mortos é que as conseguem ver.

Era de noite. Era tão de noite que nos expulsaram porque iam fechar as portas. Na verdade, era tão de noite que entrei em casa no dia seguinte.


[Lisboa, agosto, 2024]

Era agosto. Era dia de verão de agosto. E infelizmente também se cavam sepulturas debaixo do sol e das árvores.

Não entrei em casa depois da meia-noite. Mas entrei em casa com a cabeça, o coração e o corpo falidos. E a cheirar a tabaco. 

Por muitos funerais a que vá, acabo sempre a perguntar-me se o meu coração aguentará o próximo sem ter de recorrer a um desfibrilador. Se perguntarem o que está escrito na minha lápide, responde-lhes “morreu de insuficiência cardíaca. E de excesso de cigarros.”.


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