top of page
Memento Mori

Este ano, vai ser 20/20

Este ano, vai ser 20/20”. Acho que a frase era esta. Se não era esta, era algo do género. Lembro-me de estar sentado num dos sofás dos meus avós, a televisão sintonizada na TVI24, e da voz de homem, grossa, calma, confiante, repetir, ad nauseam: “Este ano, vai ser 20/20”. Isto era nos intervalos. Quando retomavam a programação, que os meus avós e a minha mãe seguiam distraidamente, mostravam a cara de gente sorridente, gente nova, velha, casada, solteira, toda diferentemente, mas unanimemente feliz, em êxtase, com o ano que ia ser 20/20 – lembro-me que alguns até usavam uns óculos vagamente ridículos, em forma de 2020. Se soubessem na altura o que sabem hoje, provavelmente não teriam dado um tostão por eles…


Pela minha parte, estava a escolher a playlist da meia-noite, as músicas que ouço na passagem de ano. Naquele réveillon, ia entrar ao som de Comfortably Numb, dos Pink Floyd, e de Heaven and Hell, dos Black Sabbath. As escolhas foram boas, e tive sorte: o momento em que soaram as doze badaladas foi o momento exato, preciso, em que começou o solo do David Gilmour. Foi mágico: os meus olhos a deliciarem-se com o céu iluminado com o fogo de artificio, e os meus ouvidos a ronronarem de prazer com aquela guitarra única que encerra Comfortably Numb. Para uma pessoa obcecada com o simbolismo, a simetria e a perfeição das coisas, como eu, aquilo era ouro sobre azul, era a confirmação: o ano ia mesmo ser 20/20… E foi. Até março.


2020 representou o fim de muita coisa, e acho que todos nós sentimos isso, com maior ou menor acuidade, com maior ou menor dor. Amizades arrefeceram; sonhos foram adiados, ou extintos; empregos foram perdidos; famílias despedaçaram-se; liberdades que dávamos como adquiridas foram espezinhadas, mesmo quando não era necessário; pessoas que amávamos morreram. Para mim não foi diferente.


É verdade, não tive só coisas más. Se não fosse o medo e o confinamento, por exemplo, não me tinha aproximado tanto de uma amiga que mantenho até hoje, e por quem tenho o maior carinho. Mas, 2020 ditou o fim, pelo menos temporário, da minha noção de tempo. Que quero dizer com isto? Pura e simplesmente que ainda sinto que tudo aquilo que se passou naquele ano, naqueles meses, entre março e outubro, ainda está extraordinariamente próximo. Que ainda estou prestes a entrar para Faculdade. Que ainda estou para fazer 18 anos. Que ainda estou em confinamento, à espera de poder sair, de me devolverem a liberdade derradeira.


Muito recentemente, como que despertei dessa letargia. Percebi que já passaram quase três anos. Que não estou prestes a fazer 18; que, na realidade, estou a poucos meses de chegar aos 21. Que não estou na iminência de entrar para a Faculdade, mas que já cá estou, e que alguns que entraram comigo a terminam este ano. Que já sou livre, que não há uma liberdade ideal com que preciso de sonhar, porque ela já aqui está, para ser usufruída em pleno. Poderia dizer que tudo mudou, mas que ficou tudo na mesma, mas estaria a mentir-me. E a mentir-vos. As amizades que arrefeceram, não voltaram a aquecer. As pessoas que morreram já não voltam, e deixam saudades, senão mesmo feridas. Até lugares físicos, onde vivi dos momentos mais felizes da minha vida, desapareceram, quase sem esperança de algum dia os poder voltar a visitar.


Outra coisa de que me apercebi, com este recuperar da consciência do tempo, é da decadência. Do envelhecer. Do cansaço. As pessoas com quem festejei a passagem de ano de 2019/2020 tinham garra, faziam barulho, davam tiros de caçadeira para o ar (sempre quatro cartuchos), batiam panelas, e terminavam tudo com umas gambas e um berbigão com molho de manteiga e alho cozinhados na hora, acompanhados de umas tostas. O calado era eu, que ficava no meu cantinho, a ver o fogo e a ouvir a minha música, satisfeito com a ordem das coisas.


Este ano não foi assim.


Eu continuei na mesma. A minha playlist da meia-noite deste ano, depois de um hiato em 2021/2022, foi The Great Gig In The Sky, dos Pink Floyd, seguida de Runnin’ Up That Hill, da Kate Bush (novamente, acertei em cheio, e confesso que fiquei de olhos marejados a ouvir as duas músicas enquanto as cores do fogo de artificio consumiam o céu à minha volta). Já o resto das pessoas com quem celebro estavam espalhadas pela casa, ora a dormir, ora a vigiar os cães, com ar pensativo, na marquise, nas traseiras, ora a ir despejar o lixo. O festim, algo azeiteiro, confesso, mas sempre bem-vindo e já tradicional, a que estava habituado desde miúdo, foi cedendo lugar, desde 2020, a um silêncio resignado e cansado, apenas quebrado, a espaços, pelos estalidos do fogo de artificio.


Não sei como vai ser 2023. Agora que estou um pouco mais desperto da letargia em que tinha caido, talvez possa aproveitar o ano de uma melhor forma. Talvez fique mais tempo a viver realidade, do que a sonhar com uma liberdade futura. Mas, também não estou certo de que viver a realidade, o aqui e agora, seja melhor, ou faça melhor, do que o sonhar: a realidade, tenho me apercebido, é a decadência lenta e inexorável. É uma espécie de caminhada para o fim, para a morte. Os sonhos servem para que nos esqueçamos que estamos a fazer esta caminhada. Para que nos esqueçamos que a decadência existe, que ela pode ser observada e tocada, se assim desejarmos.


Talvez me volte a esquecer da caminhada. Dentro em breve, pode ser que me volte a embrenhar em sonhos de liberdade e de um futuro melhor. Mas, por enquanto, estou consciente dela, sei que posso contar com ela. Aliás, neste início de 2023, sei que posso contar com três coisas: a solidão, a decadência, e a morte.


24 views

Recent Posts

See All

Lápide

Comments


bottom of page