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António Subtil

Face à História, a Pessoa não existe

(ou, Como a Guerra não é um Combate de Boxe)



Hitler não era Deus. Ou, se o era, era um Deus surgido da Máquina. Essa é a tese do advogado Hans Rolfe na mais famosa cena do filme de 1961, O Julgamento de Nuremberga.


Em vez de defender per se a inocência dos nazis, Rolfe aborda a culpa na sua verdadeira extensão.


Pergunta-se, se o Vaticano assinou uma Concordata com o Reich em 1933, legitimando-o aos olhos do mundo católico, não seria tal uma traição a Jesus Cristo, Rei dos Judeus?


Se a União Soviética assinou um pacto em 1939 com a Alemanha, permitindo a divisão entre da Europa de Leste entre si, não terão estes comunistas pactuado com o fascismo?


Se indústrias americanas operaram e negociaram com os Nazis até durante a guerra, não estarão os dólares sujos de sangue de milhões?


Rolfe conclui, “É fácil condenar um homem. (…) Se ele é culpado, [a sua culpa] é do mundo.”


Se há crítica que se possa fazer a Rolfe, é que a sua crítica não vai longe o suficiente.


Hitler não fundou o Partido Nacional Socialista, não criou a democracia fraturada alemã que lhe permitiria tomar poder, não assinou o Tratado de Versalhes que procurava vingar-se da Alemanha sem a enfraquecer o suficiente para não se rearmar, não pariu as 17 milhões de pessoas que nele votaram em 1933, nem os 14 milhões que serviram no exército, não inventou o antissemitismo que vivia e prosperava nas entranhas da Europa desde o Império Romano, não baleou pessoalmente dezenas de milhões de soldados nem conduziu os comboios que seriam a última viagem de milhões de Judeus, Ciganos, Eslavos, enfim, Pessoas.


Hitler era um Deus surgido da Máquina. Sem esta Máquina política, burocrática, militar, não haveria Deus.


Essa é a democracia perversa de qualquer ditadura: mantém-se desde que mantenha o povo satisfeito o suficiente para não ser enforcada.


É por isso que não podemos dizer que Hitler era um louco, um invasor, ou um homicida. Não, lidámos sim com um povo louco, um povo invasor, um povo homicida. Não, até isso é simplista: lidámos com uma rede mundial de loucos, uma rede mundial de invasores, uma rede mundial de homicidas – os Nazis e todos os que colaboraram ou nos deixaram seguir em frente, rumo à estrada do Inferno.


Ora, por esta altura poderão ter a mais leve suspeita que eu não estou realmente a falar de Hitler, ou da Alemanha dos anos 30.


Vladimir Putin não é Deus. Ou, se o é, é um Deus surgido da Máquina.


A opinião pública ocidental centrou grande parte da discussão em torno da Guerra na Ucrânia à volta de um homem. Bem, talvez dois. Pois se é verdade que fazemos de pessoas singulares a face do mal, também fazemos de outros grandes heróis. Se Putin tem por trás um governo inteiro, um aparelho burocrático, um exército, e uma população conservadora habituada à ideia de ditadura que, na sua maioria, apoia o nacionalismo e imperialismo russo, Volodymyr Zelensky não é um herói grego lutando contra ursos, mas sim apenas a face do exército ucraniano, do pessoal médico, dos que mantém a economia a funcionar, de todos os que mundo fora apoiam militar e humanitariamente a nação da qual ele, por acaso, é apenas um cidadão.


A Guerra não é um Combate de Boxe entre Vladimir e Volodymir, ou uma corrida para ver quem é assassinado primeiro. Cortar a cabeça de um não irá ganhar a guerra, surgirão sempre novas cabeças para liderar a hidra que é a humanidade.


A Guerra é uma Guerra de massas.


Na face da História, a Pessoa não existe.









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