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Sofia Dias

Fundo da piscina


O Afonso deixa-me à porta do edifício e dá-me um abraço de despedida. Saio do carro e entro com o cabelo preso nos botões do casaco e com a franja despenteada, por causa do vento. Não visito a avó Lúcia há algum tempo, mas a minha mãe está sempre a chatear-me para a ir visitar.


Vejo-a de longe, está sentada na mesma cadeira de sempre e na mesma posição, com as mãos uma em cima da outra, pousadas no colo. Caminho na direção dela e digo “Olá, avó!”, sentando-me na cadeira ao lado da dela e da de outra senhora. Ela diz-me olá. Anseio por uma expressão de reconhecimento, mas recebo a mesma expressão confusa de sempre.


A minha avó não se lembra das vezes que encostou a cara dela à minha, quando eu cabia nas mãos dela, para me cheirar. Nem se lembra de quando me vinha buscar à escola e eu demorava muito tempo a ir ter com ela, porque tinha ficado a falar com as minhas amigas no recreio. Esqueceu-se que me levava ao café do bairro para irmos comer torradas e eu ficava cheia de gordura na cara. Às vezes reconhece a minha mãe, mas já não se lembra de mim.


“Avó, sou a Catarina, tua neta, acabei de vir do trabalho.” Ela sorri e eu começo a contar-lhe como foi o meu dia para a distrair. Muitas das visitas que lhe faço são assim agora. Ela ouve relatos aborrecidos sobre o que se passa na minha vida, sorrindo e acenando. Acabo de descrever a visita guiada que fiz hoje à nova exposição que está na galeria e ela sorri e acena.


“Já chega! Não quero o “sorrir e acenar”! Isto é ridículo, sempre que cá venho só sorris e acenas. Não quero isso, quero que me digas que estou demasiado magra e que devia comer mais, como dizias sempre, quero que me digas que estou muito alta, apesar de saberes que já não cresço mais, quero que me dês uma nota para eu comprar um gelado. Chega de me acenares com a cabeça, quero que me grites, que me corrijas e que me digas para endireitar as costas. Porque é que já não me dizes para endireitar as costas?


Já não te lembras do que me disseste quando tinha dezoito anos e achava que nunca ninguém me ia amar, porque o Pedro da secundária não respondeu à carta de amor que lhe escrevi. Nessa altura, pensava que ele era o único rapaz de quem eu ia alguma vez gostar. Lembro-me de olhares para mim e dizeres, calmamente: “Catarina, para de ser tolinha! Vais amar outra pessoa e vai ser como deve ser. Não vai ser como gostas deste patife. Vais amar com todas as entranhas, porque é isso que fazes. Vais dar todo o teu ser à criatura e mergulhar na piscina que é a alma dela até encontrares o fundo e lá deitares a tua cabecinha e adormeceres, lentamente, como fazias quando eras pequenina. Ser amado por ti vai ser o maior privilégio que alguém poderá ter, tal como vai ser amar-te.”


Avó, não percebes? O que mais quero é adormecer, mas no fundo da piscina que é o teu colo e que me contes a história dos três porquinhos. Antigamente, bastava olhar para ti para perceberes que o que queria era só mais uma história, só mais um bocadinho acordada para depois adormecer, lentamente, a pensar no castanho dos teus olhos, que é igual ao castanho dos meus.



Porque a coisa da qual mais tenho certeza é que eu sou feita de pedacinhos teus. Não falo de genética e dos teus olhos, falo de pedacinhos da avó Lúcia, da Lúcia pessoa. Eu sou feita de ti e tu és feita de muitas outras pessoas que já se cruzaram com os teus lindos olhos castanhos. Talvez até sejas feita de pessoas que se cruzaram com as pessoas que se cruzaram com os teus olhos. E eu também sou feita delas. E sabes o melhor de tudo, o mais fascinante nisto tudo? É que tu também és feita de mim, o que quer que eu seja. Somos reciclagem uma da outra. Já viste? Nenhum de nós é original, nenhum de nós é completamente “puro”. Eu sem os “outros” não sou nada. E tu também.


De todas as coisas que dizem sobre a Humanidade, esta é a mais bonita. Na epígrafe do “Todos os nomes”, de Saramago está escrito: “Conheces o nome que te deram, não conheces o nome que tens.” É verdade, a mim deram-me o nome de Catarina, mas esse é apenas o nome que me deram, não o nome que eu tenho. Eu sou uma substância feita de outros nomes. O Sr. José, no final do livro, chega à conclusão que separar os vivos dos mortos, quer no sentido literal, como se faz com as fichas das pessoas na conservatória, quer no sentido metafórico, é, para além de ridículo, impossível. Somos todos uma coletânea de pessoas que já morreram e de pessoas que ainda estão vivas. Não é maravilhoso? Sabes como sou cética, mas de todas as coisas suscetíveis de serem verdade, para mim, esta é a mais acertada.”


O que é certo é que não digo isto, não digo nada disto. Limito-me a perguntar como é que ela se está a sentir, como se entretém durante o dia e se precisa de alguma coisa. Ela diz-me para me ir embora, porque a vida é muito mais do que estar a falar com uma velhota quase a bater as botas. Pode não se lembrar bem de mim, mas o sentido de humor continua o mesmo. Faço o que ela diz. Levanto-me e despeço-me, dando-lhe um abraço apertado.



EXTRA - Carta de amor ao Pedro da Secundária:

Querido, Pedro

Venho falar-te do assunto que deixa todos os poetas acordados à noite, as velhinhas curiosas e as barrigas doridas. Já adivinhaste qual é? Ainda não? Vou dar-te mais uma pista. É aquela coisa que “quando se revela não se sabe revelar”. Custa desvendá-la, custa descobri-la, quanto mais contá-la. Explicá-la é a coisa mais difícil no mundo e a mais fácil ao mesmo tempo. Estou a ser paradoxal, eu sei, mas a coisa também o é. Coisa misteriosa esta… Toda a gente que é gente a conhece. 
Para muitos é uma coisa enfadonha e que não merece ser digna de palavras – “Para quê escrever sobre o amor (ups, escapou), se é mais útil escrever sobre coisas muito mais importantes e dignas, como os escalões do IRS?”. O amor não já não é matéria dita “intelectual”, porque um curso não te vai fazer entendê-lo. 
Descrevo-te com frases ocas o que é o amor e falho e falharei sempre, porque quando falo parece que minto. O amor não precisa de fazer sentido para ser sentido. Prefiro sofrê-lo a cogitá-lo. Acho que cogitar o amor é coisa de Ricardo Reis, que se aplicarmos as regras da lógica ao amor, chegamos à conclusão de que não devemos enlaçar as mãos com ninguém, porque isso é muito cansativo. Mas, eu gosto de me cansar, prefiro cansar-me a ficar a ver o rio passar. Sempre gostei mais de Álvaro de Campos. Ensinou-me que as cartas de amor são ridículas, mas também é ridículo aquele que não as escreve. 
E, tu, Pedro, escreves cartas de amor?

Da tua colega do lado nas aulas de Português, 
Catarina. 

 

NOTA do autor: Isto é uma carta de amor à Beatriz, porque me mostrou que escrever cartas é uma forma muito bonita de arrumar a tralha inútil (pensamentos) do meu sótão (cabeça).






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