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Rafael Guerra

Jogo da Cabra-Cega

Estou convencido de que algures nos nossos dias acordámos todos em cair coletivamente numa burla grotesca e chamá-la de vida. É a última explicação que me resta, se me tiram esta, não sei mais o que faça.


Quem discordar, que me diga então onde não está a burla quando dou metade do meu salário para poder ter um teto por cima da cabeça; que me diga então onde está a verdade quando gasto na minha formação mais do que aquilo que muitas pessoas têm nas suas poupanças só para depois acabar no olho da rua ou num escritório a trabalhar de graça para umas quantas gravatas gordas; que me olhe nos olhos e me diga que as propinas não deviam acabar e que o saloio deverá estar condenado a ser saloio por mais mil gerações e que o filho de engenheiros deverá ser para sempre filho de engenheiros e não de caixas que recebem pouco mais que o salário mínimo. Que me diga onde está o mérito nisto tudo, caramba, quando o único mérito que vejo é o de termos herdado um mundo que foi pontapeado para a beira do seu fenecimento por homens de meia idade que já cá não estarão quando for preciso racionar o oxigénio que respiramos; que me diga onde está o racional por detrás da devoção sacrossanta ao lucro – sim, o lucro nosso que estais na bolsa, santificada seja a sua economia improdutiva e artificial, venha a nós o vosso neoliberalismo, seja feita a sua especulação… – desculpe, mas você tem 70 anos e não está a trabalhar? Olhe que agora com a esperança média de vida nos 120 você vai ter que trabalhar com pujança até aos 90, oxalá houvesse um sistema onde não meter a população toda a exaurir três quartos da sua vida a trabalhar não significasse a economia toda a colapsar e a morte de toda a Humanidade.


Isto por vezes parece ser tão histericamente falso que sinto estar completamente bêbedo, mas isso foi só ontem à noite e hoje dói-me demasiado a cabeça para não estar de ressaca; quiçá poderia ser um sketch terrivelmente mau dos Monty Python, mas eles já estão todos mortos e infelizmente hipotecámos a cultura por ela não dar lucro – bendito seja o fruto do vosso stock… –, por isso receio nunca ver os seus sucessores em vida; porventura podia ser tão-só um belíssimo excerto de Kafka, mas ele nunca imaginou que poderia existir algo pior do que acordar escaravelho gigante de pernas para o ar. E descartadas todas estas opções, repetido o processo, feito e refeito o raciocínio, sobra-me sempre a pior das alternativas: sobra-me aquela em que tenho que me resignar com a intragável verdade de que esta é apenas a realidade que os homens mais poderosos do planeta nos deram para as mãos, em nome de uns quantos gráficos e umas linhas cujo declive aumenta quando deixamos morrer pessoas à fome e bombardeamos países em nome da democracia e liberdade – leia-se, reservas chorudas de petróleo.


A verdade é que jogamos todos à cabra-cega, mas ainda nenhum de nós percebeu que somos sempre nós os vendados. Mas a vida continua. E vão uma, duas e três voltas, e cá vamos nós outra vez – e ai de quem se atrever a parar o jogo. E lá vai o zé-povinho, a tatear o ar e a fazer figura de boçal, porque ainda não percebeu que não joga com mais ninguém senão os outros zés-povinhos que, por motivo insondável, também jogam de olhos fechados, talvez por solidariedade e comiseradora empatia para com o que está vendado. E lá vão mais uma, duas e três voltas, e já estou tonto – alguém que me ampare, porque os senhores donos disto tudo rodam-nos e rodam-nos e rodam-nos e depois deixam-nos para aqui à nossa sorte a titubear de um lado para o outro. E mais uma, duas, três entrevistas de emprego, e não sei se aguento muito mais – então, diga lá, estou contratado ou não? Lamentamos, mas o senhor não tem experiência nenhuma, o máximo que lhe conseguimos oferecer é um estágio. Não remunerado? Pois claro que sim, não remunerado, evidentemente, estava à espera do quê? Não há almoços grátis. Mas ouça, eu tenho um mestrado e preciso mesmo do trabalho, há 6 anos que pago a minha formação e não ganho absolutamente nada, não será mesmo possível? Desculpe, mas não é suficiente, volte quando estiver morto. O quê?


E mais uma, duas e três voltas. E preciso de mais uma cerveja. Que o que vale é que sempre temos a cerveja; e o amor – e mesmo assim esse não é de se fiar muito, mas podemos sempre apaixonar-nos por uma noite e, quem sabe, talvez casar amanhã no vendaval dos lençóis; mas para isso preciso de mais uma cerveja, não penses muito nisso meu amor, que o importante é mesmo a cerveja: preciso de enfiar a consciência dentro de uma garrafa de tequila, porque a maratona para o marido que mais bate na mulher começa cada vez mais cedo nesta economia de sonhos. O quê? Ter filhos? Querida, eu ainda nem fiz 30, esperemos pelos 40, talvez por essa altura o mercado imobiliário já tenha acabado e todos os senhorios deste mundo tenham morrido e assim possamos finalmente comprar uma casa. E mais uma, duas e três crises, e sobe o gás, a luz, a renda, o pão, e a água, e, com eles, também sobe a nossa tesão em pelejar corajosamente contra os fantoches e os espantalhos que nos jogam à cara enquanto deixamos passar impunes as mãos e as vozes que os animam. E que nem pensem em não apertar o cinto, que agora é hora de mão férrea sobre o pobre que nem sabe ler e mão querida, afagante e submissa sobre os ricos que arrebentaram uma vez mais com o sistema económico em que vivemos; que nem se atrevam em tirar as vendas agora, que esta é a parte mais divertida do jogo – lá vão mais uma, duas e três mentiras, pois isto está claro que são os impostos, e é o Estado gordo, e é o cidadão mandrião, e é o subsídio-dependente, e é a falta de competitividade, e falta lucro (louvado seja Ele) e empreendedorismo (o famigerado); pois está claro que isto será sempre o que quiserem, desde que não sejam os mercados e o sistema em que vivemos. E vão mais uma e duas e – parem de uma vez por todas este jogo, porque eu estou farto desta merda. Tiremos todos as vendas e deixemos de compactuar com jogos que nunca gostámos de jogar.


Não sei se alguma vez acordámos em cair nesta burla delirante, mas sei com todas as minhas forças que podemos todos acordar em viver numa verdade que não nos saiba a acre nos lábios – resta saber se é isso que queremos verdadeiramente ou se a cegueira das vendas nos foi sempre congénita e a equivocámos por forçada.



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