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Sofia Dias

La petite mort

As minhas mãos encontram-se com as bochechas dele, os meus polegares parecem um limpa-vidros de um carro, movimentam-se ligeiramente para a esquerda e depois para a direita. As mãos dele estão nas minhas costas, tímidas, com medo de explorar outros habitats. A minha boca sabe a pastilha de mentol de marca branca. Separamo-nos. A boca dele está vermelha e o sítio ao pé do nariz também. Eu devo estar igual.


Beijos não existiam, para mim, antes de beijar alguém na boca. Eram uma mentira que todos contavam. Ninguém amassa os lábios de outra pessoa, isso não existe. Todos aqueles que escrevem sobre beijos são escritores com uma imaginação tórrida, escrevem livros de fantasia, escrevem sobre o que não é real. Ora, beijar era, portanto, uma conspiração judaica até o João, moreno, alto e com olhos cor de chocolate, me espetar um beijo na boca, naquele dia quente de verão.


Este processo da descoberta da existência das coisas relembra-me a Fenomenologia, em que o nosso objeto de estudo são os fenómenos, no seu sentido lato. Assim, tudo o que podemos saber do mundo e de nós próprios resume-se a fenómenos, a estes objetos fenomenais que o ser experimenta durante a sua finitude. Logo, toda a minha conceção de realidade era baseada nos fenómenos que experienciara, apelidando de tudo o que cabia a outros corpos finitos, até ao momento, de irreal ou imaginário.

O ato de beijar alguém não foi a única vítima da negação da sua existência como conceito praticável. Morrer também o foi.

Sabia que a morte circulava entre nós, estava connosco quando comíamos um gelado, quando lavávamos os dentes, quando discutíamos com alguém que amávamos, quando bebíamos café e alimentávamos o cão. Ela dançava o vira, mas, aos meus olhos, nunca tinha par. Nunca me tinha ocorrido a hipótese de a ver, de a encarar e de ter um jogo do sério com a criatura. Reconhecia o facto de as pessoas morrerem, mas não MORRIAM com letras maiúsculas, certo? Sim, não iam para o céu, eu não era assim tão tolinha, mas também não paravam de existir. O avô Joaquim morreu, mas não MORREU.

No dia em que descobri que a morte existia estava muito calor. Estava tanto calor como no dia em que o João me deu o beijo. Talvez seja por isso que os franceses chamam ao orgasmo “La petite mort”, a pequena morte.


O dia em que disse “olá” à morte foi também o dia do meu primeiro funeral. E eu não sabia existir num. Como se atua perante a morte? Como se a encara? Ela parece ter cara de poucos amigos, pensei. É suposto rir num funeral? É suposto sorrir? É suposto chorar, mesmo não conhecendo o falecido, mas sim os seus familiares, como era o meu caso? É suposto abraçar?

Tinha a sensação que, perante a morte, não se devia existir. Seria uma falta de respeito existir quando alguém parou de o fazer e a mim educaram-me sempre a pedir “desculpa” e a dizer “obrigado” e eu queria ser uma menina bem-educada. A minha obsessão com comportar-me bem tornou-se em narcisismo, reconheci. Um homem morreu e eu perguntava-me se devia rir-me com ele estendido na sala. A minha mãe contou-me que o meu avô, quando vai a funerais, conta histórias e toda a gente se ri e isso deixou-me mais aliviada.

A morte apresentou-se perante mim no silêncio de uma sala, em forma de luto. Quando vi alguém que conhecia a chorar de saudades profundas, causadas pela dança do vira da morte com o morto, soube que ela existia. Que ela não existia como pretexto dramático e sentimental nos filmes e era, logo, fictícia. Que a guerra causava mortes palpáveis. Que a gata da avó morreu. Que o avô Joaquim morreu também. E tudo o que foi preciso era mostrarem-me sofrimento causado por alguém que nem conhecia, que estava a 3 metros de nós, sem o coração a bater.


A minha família era mestre em esconder as danças da morte. Nunca vi ninguém da minha família a chorar pelos pais falecidos ou avós ou amigos ou quem quer que fosse. Nunca fui aos funerais deles. Logo, era simples. A morte não existia se não deixava marcas que eu pudesse ver. Até àquele dia de agosto.


Ninguém se riu. As pessoas choraram. E, sim, abracei.


Eu sabia que o nosso fim era sempre o mesmo. Que a morte era a coisa mais natural que podia acontecer e mesmo assim não me conseguia abstrair do corpo morto ao lado, quase que ignorando os que estão vivos ao meu redor, como se a morte fosse algo mais raro que a vida. Como se tivesse o seu próprio sistema operante com uma economia e pessoas para maltratar. Como se, quando fosse para a cama, me deitava sobre um morto; como se estivessem pousados nos meus dois ombros mais uns quantos; como se quando levasse a colher com os cereais à boca engolisse mais um; como se os mortos fossem tão leves, tão pouco corpóreos, que estavam mais perto de nós do que os vivos. A morte era a hipérbole da vida e não o seu fim, era um exagero que levava demasiado e deixava muito pouco.


A minha mãe, no silêncio daquela sala, sussurrou-me ao ouvido: "Sabes, Sofia, no livro que te emprestei diz-se que estar morto deve ser inteligente, que todos os mortos são muito inteligentes em forma de alma, porque Deus não suportaria viver com imensas almas burras. O corpo, esse, esse é um traste. A alma é brilhante. Merecedora de verdadeira beleza, amor. Se nos olharmos ao espelho e só víssemos a nossa alma morreríamos de espanto, do quão maravilhosa ela é. Viveríamos apenas nas costas dos olhos, sabes? Seríamos apenas as costas dos olhos. O interior. O lado de dentro. Mas, estou muito contente pelos nossos corpos transportarem as nossas. Assim, não poderia ouvir as tuas teorias e não saberia quem procurar para as ouvir quando morrêssemos."


Sentia algo místico, sagrado, como se os que estavam naquela sala, numa noite de sexta-feira, guardassem o segredo mais precioso sobre o existir humano, mas se engasgassem entre lágrimas e soluços sempre que ele se prendia por um fio na ponta da língua. Eram calados como se o João, de olhos castanhos, lhes tivesse espetado um grande beijo na boca



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