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Carolina Correia

MARIA

“Maria!” - gritei.


Naquele dia estava diferente. Ela que passava a vida a tagarelar, tinha estado muito calada, e agora fugia-me. Pensei, enquanto a perseguia desesperadamente por aquele corredor, em contar-lhe tudo. Afinal, não tínhamos muito tempo.


Pensei em como gostava de ser boa com despedidas. As lágrimas que eu teria poupado, lágrimas que dariam para encher um lago algures entre montanhas numa paisagem de um filme... A Maria finalmente parou, já perto da linha do comboio, e eu parei perto dela, ainda ofegante da corrida.


“Por que é que vinhas a correr?” - perguntou-me ela, com o seu habitual sorriso sereno.


“Maria, como assim? Porque ias a fugir de mim, tive de correr para te alcançar!” - respondi, confusa.


A Maria riu-se calmamente, certamente reparando na minha cara ofendida com a pergunta. Explicou-me que não vinha a correr, aliás vinha a andar a passo lento pelo corredor, e parou assim que me ouviu chamá-la. Pensei que ela mentia… Ou isso ou eu estava a enlouquecer (também era possível).


“Alguma vez sonhaste que ias a correr atrás de alguém, e independentemente do quão rápido corresses nunca conseguias alcançá-la? Foi isso. Devias estar a viver dentro desse sonho, mas na vida real. Foi a tua cabeça a brincar contigo.” - disse-me, rindo suavemente.


Zanguei-me. Não queria acreditar nas palavras dela. Afinal, eu sabia bem que aquilo não era nenhum sonho, e vira com os meus próprios olhos a Maria a correr à minha frente uns minutos antes. Não eram invenções do meu cérebro cansado. Pensei que talvez ela estivesse a fazer aquilo para me irritar e me distrair da inevitável despedida que se aproximava.


Ao fundo uma voz anunciava que faltavam cinco minutos para o comboio chegar. Nesse momento, não quis continuar zangada com ela. Convenci-me que cinco minutos chegavam perfeitamente para lhe contar tudo, para lhe dizer tudo o que faltava dizer…


Ela continuava a olhar para mim com um sorriso calmo, que (como sempre) contrastava com a minha cara angustiada. Não parecia minimamente abalada com a nossa evidente falta de tempo. Ela, aliás, umas horas antes, tinha partido sem sequer se despedir de mim. Lembrei-me disso e tive vontade de lhe perguntar se não se arrependia. Mas não o fiz, porque sabia que estávamos a ficar sem tempo, e não o queria desperdiçar.


Sempre fizera dos relógios meus inimigos, desde pequena. Para a Maria era ao contrário, era como se nem existissem relógios nenhuns no mundo. Ela era uma alma livre e, ao contrário de mim, vivia a vida pelas suas próprias regras. Tantas vezes ao longo dos anos eu desejara ser como a Maria…


Não conseguia arranjar palavras para lhe dirigir naquele momento (ela continuava a fitar-me em silêncio), e prossegui perdida nos meus próprios pensamentos. No fundo eu tinha sorte, pois tinha a oportunidade de me despedir dela. Quantos de nós não chegam a despedir-se de quem amam…


Imaginara aquela despedida vezes e vezes sem conta ao longo dos últimos meses, correndo-a na minha cabeça como um filme (uma curta-metragem). O que diríamos uma à outra, o momento em que nos abraçariamos, o lugar exato dos silêncios e dos risos, o presente que lhe levaria (e que agora me tinha esquecido em casa, com a pressa de sair atrás dela), até a forma de lhe acenar pela última vez. Mas agora que estávamos as duas ali, escolhemos ficar em silêncio, como se nada mais tivéssemos a dizer uma à outra. Logo eu, que ainda tinha tanto por lhe contar…


O comboio aproximava-se rapidamente de nós. As lágrimas começaram a escorrer-me furiosamente pelo rosto. Continuava calada, paralisada. A Maria continuava em silêncio também, mas ainda a olhar-me de sorriso calmo na cara. Pegou nas suas malas e esperou que o comboio parasse e as portas abrissem. Depois aproximou-se da porta, olhou para trás e disse-me apenas “até já”, ainda com um sorriso na cara. Eu não disse nada, não me mexi um único centímetro. Parecia que qualquer ação que eu tomasse naquele momento seria a errada. À minha frente via apenas uma névoa, e fiquei presa ao chão até a porta se fechar, ela a olhar para mim e eu a olhar para ela. Até que a porta fechou e o comboio seguiu o seu caminho.


Não sei se nessa altura a Maria chorou. Talvez sim, mas por outro lado, talvez não. Deixei o corpo cair no banco mais próximo, ainda lavada em lágrimas. Não entendia como é que alguém poderia ser tão bom nas despedidas. Será que ela não sentia as coisas? Talvez eu fosse exagerada e sentisse demais, mas também não era normal sentir tão pouco! Ou se calhar ela até sentia, mas não o sabia (queria?) demonstrar. A verdade é que as almas livres não se deixam (não podem deixar) prender às coisas, aos lugares, nem mesmo às pessoas; e eu no fundo sabia disso.


Deixei-me ficar esparramada naquele banco na estação por mais alguns minutos, até as lágrimas secarem. Depois levantei-me e voltei para casa. A minha vida continuou e a da Maria certamente também. Nunca mais falei com ela, nunca mais tive novidades. Ao longo dos anos fui questionando se isso me trazia paz ou tristeza; nunca cheguei a perceber.


A verdade é que a vida está cheia de “Marias”. Aliás, a vida é um vaivém de “Marias”, que ora entram ora saem da nossa vida. Às vezes despedimo-nos com toda a pompa e circunstância, outras vezes temos a oportunidade mas por um ou outro motivo não aproveitamos a despedida que nos é concedida pelo universo, e na maioria das vezes nem nos chegamos a despedir (ora porque não sabíamos que aquela seria a última vez, ora porque não quisemos aceitar que era um “adeus”). Também acho que quase nunca dizemos tudo o que tínhamos a dizer, nem fazemos tudo o que queríamos fazer. Hoje em dia nem sei se prefiro despedir-me ou não, mas sei que detesto fazê-lo. Detesto despedidas e recuso-me a lidar bem com elas.


Mas agora percebo que naquele dia talvez estivesse mesmo a correr atrás da Maria quando ela não estava a fugir de mim... O medo de perdemos alguém (mesmo que não seja para sempre) faz-nos isso. Hoje, já quase esqueci o timbre da voz da Maria, as músicas que ela tocava sempre na guitarra, o cheiro característico dela, até mesmo as suas feições (não fossem as fotos, acho que já teria esquecido mesmo).


A vida é isto, não é? Apaixonamo-nos pelas pessoas, damos-lhes tudo de nós por um certo período de tempo (podem ser anos, meses, até mesmo dias); e depois há um dia em que elas nos abandonam, como (quase) todos os outros. Mas a verdade é que, mesmo sabendo o que sei hoje sobre o rumo da minha história com a Maria, teria feito tudo igual. Teria sido amiga dela na mesma, ter-lhe-ia dado tudo de mim e deixado que ela me desse tudo dela, ter-me-ia apaixonado pela forma de ser dela mais uma vez. E teria sentido a dor da despedida da mesma forma. Porque a vida é isso, é um vaivém de pessoas… Pessoas: que bom motivo para estar viva. Conhecer e amar seres humanos, mesmo sabendo que um dia eles irão provavelmente partir (especialmente porque um dia eles irão provavelmente partir).

A todas as minhas “Marias”, eu amo amar-vos mesmo sabendo que um dia poderei ter de me despedir (e mesmo que possivelmente nem chegue a haver uma despedida mas que a vida se encarregue dela). Vocês são a minha razão de viver. E amar-vos-ei para sempre, mesmo quando um dia já mal me lembre da vossa voz…


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