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Mãos Flanantes

Melancolia

Meto a chave à porta, luto contra a fechadura, chamo-lhe nomes, saem palavrões da minha boca. Venço-a com má educação, entro em casa, meto as chaves no aparador. (Era assim que começavam as crónicas? Era, sim. Começavam sempre com uma mulher mal resolvida a lutar contra portas e aparentemente cansada. Já não as escrevo há tanto tempo... É tão fácil escrevermos sobre nós sem o fazer e eu sempre fui tão cobarde. Mas, olho para trás e rio-me. Que ingénua. Que tola. Escrevia coisas supérfluas, sem fio condutor. E agora o que escreves, ------- , hun? Continua lá a tua historiazinha, continua)


Atiro os sapatos para um canto. Dispo o casaco. Cheiro-me - cheiro a cigarros, a Lucky Strikes. (Nós agora amamos cancro do pulmão, porque nos faz parecer misteriosas, sabem? Porque se sair fumo da nossa boca talvez alguém a queira beijar) O cheiro faz-me náuseas.


Vou para a casa de banho. Tiro as cuecas e sento-me na sanita. Penso em como gostava de ter alguém agora a lavar-me o cabelo e que entrasse comigo para a banheira, mas só para me lavar o cabelo e eu fechar os olhos por um bocadinho. Tenho pena que a minha mãe já não me lave o cabelo. (Eu sempre fui estupidamente preguiçosa)


Levo a cabeça às mãos e apoio os cotovelos nas pernas. Todos falam das dores de cabeça depois das folias, mas ninguém fala das dores de coração. (Falam sim, mas por propósitos artísticos, de forma a construir uma narrativa tristemente bonita, é necessário fingir-nos de únicos e mártires. Os poetas acham sempre que são os únicos que conhecem a poesia e que fazem amor com ela. Filhos da puta. Filha da puta. Sedenta por atenção. ----, sabes que admitires que fazes isso não te faz melhor pessoa, certo? E também deves entender que admitires que admites que fazes isso também não o faz, certo?)


Penso nos olhares que se trocaram naquela noite, nas raparigas que piscavam os olhos de forma atraente e nos rapazes que falavam com a voz mais lenta e que arranjam pretextos estúpidos para lhes tocar. A ideia da minha sensualidade com homens enoja-me, pensei. Estar alí a esforçar-me sem me aperceber de que o estou a fazer. Não há mal em querer a atenção de um homem. Ora, claro que não, todas as outras mulheres fazem-no e eu não penso que são putas (eu sou feminista, sabem?), mas a ideia de eu própria fazer algo ativamente para atrair um homem causava-me urticária. (És lésbica e não sabes ou se calhar tens traumas dos homens que se cruzaram contigo, aquele mais velho que parecia o Salvador Sobral era asqueroso… Ou, e ponho todo o meu dinheiro nesta, és uma ateia cristã, profundamente marcada pela Igreja. Em nome do pai, do filho e da opressão sexual feminina).


Dispo o vestido, entro na banheira e ligo o chuveiro. Deixo-me afundar. Como me afundo em tudo. Mergulho de cabeça. Splash. Começo a soluçar. As minhas lágrimas fodem (ela usa a palavra “foder”. Sucesso. Já não tem medo de intimidade física) com a água que me cai sobre a cabeça. Sinto-me tão cansada e não foi porque dancei a noite inteira. Sinto-me sempre assim. A minha cabeça está sempre a falar com ela própria (como está a acontecer aqui, já viram?) Nunca se cala. Há sempre mais qualquer coisa para dizer. Sinto-me cansada. Por causa do monstro. Da noite. Do dia. Da sombra. Do IVA.


O meu estado natural é como o capitalismo, está condenado a crises cíclicas, acho que é por isso que escrever, para mim, é uma questão de controlo. De poder e de imposição. Uso-a para me impor, porque sinto que não o consigo fazer no resto. É talvez uma jogada sádica, mas é a única coisa que consigo agarrar realmente pelas mãos. Sinto uma espécie de impotência relativamente à minha vida, às minhas relações e ao típico enclausuramento do mundo. Mas quando escrevo, sou dona de mim, transbordo-me toda, porque mo é permitido. Nada me saberá tanto a liberdade como isto. Acho que é por isso que alguma interferência externa contra a minha intenção com as letras me sabe tanto a acre. É algo extremamente egoísta, solitário e estupidamente individual. Ultimamente, os nossos desejos irracionais moldam o que fazemos, a arte é o artista e se não o for, é apenas um ofício. Eu delicio-me a escrever um sermão como o da missa. Para prostituir as minhas teorias estupidas. Para que alguém me diga, “Sim, estás completamente certa”, “Sim, ----, é isso, a felicidade não é uma constante na vida, o sonho é.”, “Sim, ----, eu também acho que que a arte está morta.”, “Sim, ----, eu também quero que a ideia de beleza se fod-“


Saio do banho, olho-me ao espelho, completamente nua. Quando crescemos fazemos uma escolha. Admitimos que não é pelo nosso aspeto que nos vão amar à primeira e, então, focamo-nos noutras coisas que nos fazem sentir merecedoras de amor. Ou admitimos que somos verdadeiramente e fatalmente bonitas e temos de nos convencer constantemente que é possível sermos amadas por outra coisa que não os nossos olhos azuis. A beleza é uma carcere. Estou farta de me tentarem convencer de que todos somos muito bonitos. Não vamos incluir mais pessoas na categoria nefasta, deitemos-lhe fogo. O meu corpo é só a máquina que transporta o meu cérebro. O meu corpo não devia existir porque é bonito, o meu corpo devia existir porque me permite pensar. (Não, não devia. O vestido no chão da casa de banho prova-o. Os pinceis de maquiagem no chão do teu quarto também.)


Pego na escova e começo a pentear-me, seguindo o meu olhar no espelho.


O que eles não contam sobre a melancolia é que ela tem a tua cara e vem sorrateiramente, como os fios de cabelo que perdes a pentear-te, eles voam e nem dás por isso.


É solidão quando estás rodeada de pessoas.


É acreditar num determinismo fatal que te diz que não foste daqueles que nasceu para conquistar o mundo.


É lutares com o amor e ao mesmo tempo desejares tê-lo na tua cama.


É utilizares a escrita para te vitimizares, porque pensas que se não conseguires traduzir o que sentes, senti-lo foi em vão. Sofreste para nada.


A melancolia é o que acontece quando esvazias a água dos teus fundos de piscina e eles tornam-se ásperos.


A melancolia é o que vem quando te apercebes que o facto de seres percecionada como simpática não passa de uma forma de te dizerem que acham que és submissa em contextos de conflito.


A melancolia é admitir que o Álvaro é exaustivo por sentir tanto, por pensar tanto, por querer ser tanto sem o ser.


A melancolia é eu estar deitada em bolinha na casa de banho e o meu gato vir-me lamber os pés, e rir-me desalmadamente, principalmente, por estar nua em posição fetal no soalho da minha casa de banho.


É querer que alguém me tire do chão da casa de banho, me puxe para o colo e me faça festinhas no cabelo.


Andei tanto tempo à procura de algo que apaziguasse isto, mas nada resultava. O monstro era mais forte e a minha intenção de deitar tudo a perder pela janela também.


Por isso, por favor, diz-me que sou bonita desgastada e cansada deitada no chão da casa de banho. Que o que faço com as palavras significa alguma coisa, que não é inútil. Que a minha noite e o meu dia se confundem. Que não faz mal querer mandar o curso à merda. Que não faz mal sentires-te furiosa por achares que tens um espaço muito pequenino para existir emocionalmente. Que as crónicas eram decentes. Que o cheiro a laranja não te queima as narinas. Que percebes as metáforas com frutas e monstros e piscinas. Que me conheces e não que apenas pensas que me conheces.


Sussurra-me que vai ficar tudo bem, como se o bem viesse numa bandeja, como se o que salva não fosse eu, mas sim uma entidade paranormal que me vem trazer paz à cabeça numa fatia de bolo, daqueles cheirosos e fofinhos que a minha avó fazia, para o poder comer e mastigar no chão da casa de banho toda nua.




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