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Rita Esteves

Mente-me, que eu gosto

Querido Xavier,


Todas as mentiras têm um pingo de verdade. É isso que as torna tão perigosas: as mentiras nunca são totalmente mentira.


Mas as tuas são diferentes, deixam um sabor doce na boca e não aquele trave amargo tão característico. Acho que é a maneira como quase me consegues enganar que me encanta, sempre que me olhas nos olhos e lanças as tuas palavras como flechas na minha direção. A tua pontaria não é perfeita, sejando sincera, nunca foste ótimo no tiro ao alvo, e muitas vezes falhas completamente o centro. Eu finjo que não noto, porque também não sou excecional neste jogo, embora seja de longe melhor do que tu. Por isso, proponho que continuemos a disparar tiros no escuro e contemos quem acerta mais vezes, quem perde primeiro: o certo é que sairemos aos buracos, sempre com algumas partes do outro e com menos partes de nós.


E assim eu oiço-te, miro-te, concordo com o que dizes, finjo-me de surpresa. Riu um pouco, porque é a minha vez de dar espetáculo: é a minha vez de atuar nesta tragédia. E que belo papel que faço, uma performance impecável - afinal, a prática leva à perfeição. Talvez a minha verdadeira vocação fosse o teatro...


E tu ouves-me, miras-me, concordas com o que digo, finges-te de surpreso. Ris-te um pouco. Vejo que também conheces bem a arte da sedução, além de gostares de mentir à descarada.


E assim dançamos: um passo em frente, dois ao lado, agora eu dou uma volta. Uma pausa. Um sorriso. Um olhar. Talvez não seja tão mau assim, viver no conforto da incerteza.


Observas-me e estudas-me por mais um momento, medes-me de cima a baixo, imitas o que eu faço como se fosses o meu reflexo num espelho. E eu faço o mesmo contigo: fico reduzida ao reflexo de um reflexo, algo que gostaria de ser e não sou.


E depois falamos. Falamos muito, porque contigo as conversas são sempre longas e as noites demasiado curtas e quentes: o verão é a altura ideal para as conversas de café que não têm nada a acrescentar. Tu falas, pouco dizes. Felizmente para ti, eu tenho sempre tanto para contar. Gosto de pensar nisto como uma troca inocente de presentes, em que cada um dá o que pode oferecer.


E, se um dia, durante o nosso cochichar, no meio deste câmbio de ideias e segredos, procurasses a minha sinceridade - se um dia eu quisesse ser sincera – dir-te-ia: lá no fundo, nos recônditos do meu coração, eu até gosto das tuas mentiras, porque sei que a tua verdade não será tão agradável aos meus ouvidos.


E, se um dia, procurasse a tua sinceridade - algo que dificilmente ainda sabes usar - dir-me-ias que gostas daquelas que eu te conto, que te trazem conforto para a alma e alegria para o espírito.


Por isso, acho que talvez não sejamos uma causa totalmente perdida, e só um caso extremamente difícil: uma dinâmica demasiado requintada para os olhos alheios do mundo compreenderem. Mas, e se formos? Bem, nesse caso, é como toda a gente diz: pelo menos, só se estraga uma casa.


Ontem, sentados nos degraus à porta do meu prédio, sussurraste-me ao ouvido, enquanto eras invisível ao mundo e só o vento te conseguia ouvir: "Amo-te". As palavras enganam, mas os olhos não mentem. E eu ri-me, como sempre: "Aí, Xavier, mente-me. Mente-me, que eu gosto."

Penélope.



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