Raquel Bravo
Carta a todas as mulheres que lutaram por nós:
Queridas mulheres,
Escrevo-vos no presente mas sei que cada palavra minha carrega o peso do vosso passado. Um passado marcado pela luta e pela resistência.
Hoje estudo, trabalho, voto. Não foi o acaso que me deu estas liberdades- foi a vossa coragem.
Sei que muitas de vós morreram sem nunca ver a mudança pela qual tanto lutaram, sem ouvir um “obrigada”, sem ver as leis a ser reescritas, sem saber que um dia, mulheres dirigiriam países, liderariam empresas.
No entanto, saibam que o vosso legado persiste e a vossa luta não termina aqui. Porque ainda há mulheres que não podem estudar, que não podem decidir sobre os seus corpos, mulheres que são, simplesmente, silenciadas. Por elas, pelo vosso exemplo, continuaremos.
Obrigada por nunca desistirem. Obrigada por não aceitarem o mundo como ele era. Obrigada por me permitirem ser quem sou.
Com muita gratidão,
Uma mulher que não esquece,
Raquel Bravo
Júlia Lopes
Há uma parte de mim que sangra
A cada esquina que ficou por cruzar;
A cada noite que não se descobriu.
A cada saia que ficou por usar.
Há uma parte de mim que se entristece
Por não poder mostrar
Resquícios de criança,
Joelhos esfolados no alcatrão
pela lembrança
De viver sem atentar
A cada esquina que cruzava.
Chorei quando cresci -
Quando vi o meu corpo
a enformar.
Quando vi um pedaço
do meu futuro
Na minha roupa interior.
Há saudade no amor
De se ser sem se pensar;
De nada se querer para além da liberdade,
Julgando-a possível.
Agora leio Clarice e percebo
Que quero tanto mais que isso;
Que há um mundo de que preciso,
Que não posso encontrar aqui.
Há uma parte de mim que sangra
A cada rosto em que não vi o luar
refletir,
A cada carruagem de metro
que esperei por vir;
A cada saia, que ficou por vestir.
Há uma parte de mim que chora
Por cada sonho que ficou por conceber,
Por todos os gritos que foram dados
E continuamos a morrer.
Há uma parte de mim que sangra,
que chora,
que não se cala. E será sempre assim.
Anónimo
O dia estava cinzento, mas tépido, como quando se vai com a escola à praia e o sol se esconde. A cama tinha um sabor a nuvens e a algodão doce comprado pelos meus pais, quando fazíamos algo fora do habitual. Um som erguia-se por entre o silêncio: o da segurança de se estar sozinho.
As horas esperavam por mim, pelo que decidi despachar-me; tornar-me pessoa, pentear o cabelo antes de tomar banho, por ainda estar confusa. Ou porque se calhar é mesmo assim que se deve fazer – não me lembro de me terem ensinado essas coisas; o mais importante fica por ser descoberto à medida que não nos vamos fartando da vida.
A minha roupa estava no chão e o banho à espera de ser tomado. Há qualquer coisa de ritualístico, e de bonito, em deixarmo-nos envolver tão intensamente, ainda meio adormecidos. Especialmente com a água tão quente quanto a que a minha pele pede.
À medida que saio de baixo da torneira, vendo os pesadelos – e, enfim, também os sonhos – escoarem pelo ralo, ganho uma nova consciência. A consciência de que tenho cabelos lá presos, mas de que são meus.
Deixo a toalha envolver-me, como o abraço perdido, mas certo, de que precisava sempre que brotava uma nova borbulha no meio da minha testa e sempre que as minhas sobrancelhas pareciam grandes demais, carregadas demais, mas nunca bonitas (ou minhas).
O espelho à minha frente estava embaciado e liguei o secador de cabelo para poder ver-me nele – também nunca mo ensinaram. De cada vez que sentia que precisava de olhar para o meu reflexo depois do banho, ensinaram-me a passar a mão ou a toalha, mas, com o tempo, cansei-me de ver as marcas de infância e de as ter de limpar com uma toalha de papel e produto anti-riscos.
No momento em que desligo o secador é quando me vejo, pelo que senti ser a primeira vez. Havia gotas a escorrer-me pelas clavículas, que aprendi com a minha amiga que se podem chamar de “saboneteiras”; a minha pele brilhava, as minhas sobrancelhas já não pareciam grandes demais, e sorri.
Olhei para baixo: as minhas unhas dos pés pintadas de encarnado; as minhas mãos, macias, sem o mundo, mas também sem o peso da insensibilidade. As minhas orelhas furadas no centro comercial, quando tinha oito anos; a minha pele rosada, não por vergonha, mas por característica, pintando-se Vénus de Botticelli na parede à minha esquerda.
Foi quando me vi, pelo que senti ser a primeira vez,que me reconheci. Reconheci que as minhas maçãs do rosto são produto delicado, mas que o meu sangue corre com força suficiente para as rosar.
Sequei o cabelo e entalei-o por detrás das orelhas.
Reconheci-me, vi-me e, pela primeira vez, senti-me merecedora de ser Mulher.
Natacha Santos
Não sou maria rapaz, sou maria
Não tenho costas de homem, são de atleta
Não sou uma “gaja com eles no sítio”, sou confiante
Não sou mulher alfa, sou líder
Não sou rija como os homens, sou trabalhadora
Não choro porque sou menina, mas porque sou pessoa
Não sou macho de saia, sou eu
Não preciso de ser comparada para provar o meu valor.
Não sou exceção, sou regra – porque ser mulher nunca foi sinónimo de menos
Se mostro emoção, sou dramática
Se quero competir com homens, sou louca
Se sonho com a mesma oportunidade, estou a delirar
Se me defendo a pés juntos, sou desequilibrada
Se falo com firmeza, sou mandona
Se exijo respeito, sou insuportável
Da mesma maneira que ele não chuta como uma menina, mas com menos força
Ou Ele não tem mãos de princesa, mas sim umas mais delicadas
Não preciso que redefinam a minha força,
nem que me encaixem em padrões que não pedi.
O subjetivismo negativo que conotam ao meu ser não é prova de superioridade
Talvez de insegurança ou de ameaça
Porque não sou uma versão masculina do sucesso,
sou a minha própria versão da excelência.
Matilde Almeida
A história da mulher contada aos homens
Era uma vez um mundo estranhamente dividido. De um lado, os corajosos, fortes e inteligentes, de outro, os homens. Os primeiros desde a sua fase mais primitiva que cumpriam o importante dever de alimentar, criar e proteger os seus e a sua comunidade, enquanto os homens corriam pelo mato que mais tarde destruiriam. No entanto, foram estes últimos que a toda a força usurparam os louros do esforço e mérito dos primeiros.
Assim, a vida começou a tornar-se penosa: não podiam pensar, não podiam votar, não podiam governar, não podiam explorar o mundo que os rodeava e os seus recursos, não podiam estudar, não se podiam expressar, não se podiam queixar, não podiam conduzir, não podiam fumar, não podiam comer, não podiam respirar - não podiam existir. Enquanto isto, os homens aproveitavam todos privilégios de uma vida que não seriam capazes de sustentar sem os “corajosos, fortes e inteligentes”, e, ao invés de lhes agradecer, limitavam-se a ditar as condições da sua existência, manipulando-os a seu bel-prazer e sem nunca hesitarem em castigar quem os desafiasse.
Mas não há acusações de loucura, humilhações, fogueiras e desterros suficientes que adestrem ou tirem o poder intrínseco aos mais fortes, pois estes nunca deixaram de lutar: sempre pensaram, sempre combateram, sempre influenciaram, sempre descobriram, sempre libertaram – sempre existiram. Para dor do ego macho, esta espécie nunca se deixou ameaçar pelos atentados à sua humanidade, desafiando constantemente o homem e as suas conceções ingénuas acerca das supostas criaturas fracas e da falsa crença do apuro eterno que as faz aguardar o seu resgate heróico.
A luta continuou e para sempre continuará, mas agora tem nome, assim como todas aquelas que a representam e carregam diariamente: as mulheres.
Mafalda Carrôlo
O feminismo desprendeu-se da consciência feminina portuguesa - revivamo-lo.
Já lá vão 5 décadas em que cada português pode, em plenos pulmões, afirmar, gritar, gabar a sua liberdade. Quase 51 anos de incorporação da igualdade e fraternidade na sociedade portuguesa.
A princípio, a luta feminista perdeu-se nesta luta geral pela liberdade. Contudo, eventualmente, as mulheres portuguesas puderam, de uma vez por todas, ver-se libertas. E se as amarras legais foram as primeiras a desaparecer, faria sentido que as amarras culturais e morais a elas seguissem.
Mas não foi isso que se viu, não é isso que se vê.
A igualdade de género está constitucionalmente consagrada - mas há desigualdade salarial, pobreza menstrual, mutilação genital feminina, femicídio. São problemas portugueses, por muito que os queiramos empurrar para outros recantos do mundo. A existência de igualdade formal é, muitas vezes, brutalmente invocada para esconder a falta de igualdade material. Aliás, esconde-a tão bem que parece que mesmo algumas de nós já se esqueceram de que temos de continuar a correr atrás dela.
Assim, na consciência portuguesa, a causa feminista parece ter caído. Caiu, mas não por ter perdido as forças, antes devido a um hábito que tem memória curta. Hábito que se esquece que apenas teve espaço para nascer após mortes em seu nome.
Mas este hábito contraria-se: vejo à minha volta um feminismo entranhado. Noto-o nas minhas colegas, professoras, amigas, familiares. Tenho orgulho em pertencer a uma geração em que ser feminista é quase como uma segunda natureza, mas, nas palavras de Manuela Tavares, este é um rótulo que ainda queima. Porque é que, agora que podemos gritá-lo em alto e bom som, nos inibimos de fazê-lo? “Há problemas maiores no nosso país”. Maiores? Afigura-se-me difícil conceber uma maior gravidade do que a constância de um problema - a desigualdade de género - que intensifica todos os outros.
Não estamos em posição de baixar os braços até que vejamos garantida a igualdade entre homens e mulheres - na saúde, na educação, no trabalho, na cultura, na sociedade. Contribuamos com o feminismo intrínseco que todas temos para reviver esta parte integral da liberdade portuguesa. Só aí a nossa luta estará ganha: devemo-lo à memória das que vieram antes de nós e à confiança das que virão depois.
Pedro Paiva
Beatriz Ângelo, mulher que dá nome
ao hospital da minha terra,
primeira a votar,
quando o mundo lhe fazia guerra.
Desafiou o tempo, que impunha barreiras
e fez do silêncio voz nas lutas verdadeiras.
O seu nome é memória,
mas a sua luta não se encerra
porque cada mulher que avança,
faz da esperança, nova terra.
Hoje relembramos com toda a certeza:
o caminho só acaba
quando a igualdade
for mais do que uma promessa.
Lara Cândido
Sob o fingido reino celestial dos reis retrógrados,
Sob o fingido reino celestial dos reis retrógrados,
Obedeceram à gravidade angélicas estrelas,
Duma letal substância profundamente repletas,
E sedentas por nutrir os seus reis, esfomeados.
Que ali estava, discreta e subtilmente presente
O que punha o coração aos saltos, mais que a morte,
Era verdade - nem o de lá mais competente vidente
De ter o vislumbre do seu desfecho teve a sorte.
Filhos, pais, avôs - todos eles se deixaram seduzir
Pela beleza etérea daqueles corpos celestes; eles
Todos se inebriam ao tocar impura e rudemente.
O rejubilar egos régios trouxe eterno dormir, e
As rainhas da sub - missão, jugação, valorização deles,
Riram-se: haviam provado do seu veneno, finalmente.
Bernardo Pinto
Simone Veil: Um Legado de Liberdade e Coragem
No Dia Internacional da Mulher, é essencial relembrarmos figuras femininas cuja luta e resiliência marcaram a história. Entre elas, destaca-se Simone Veil, uma mulher cuja vida foi dedicada à causa pública, liberdade e dignidade da pessoa humana. Sobrevivente do Holocausto, pioneira na política francesa e defensora intransigente dos direitos das mulheres, Veil personifica o espírito de resistência e progresso que esta data celebra.
Nascida em 1927, em Nice, Simone Veil viveu na pele os horrores da Segunda Guerra Mundial. De origem judaica, foi deportada para Auschwitz-Birkenau em 1944, onde perdeu grande parte da sua família. Sobreviveu ao Holocausto e, apesar do trauma, decidiu reconstruir a sua vida e lutar para que tragédias como essa nunca mais se repetissem.
Após estudar Direito e Ciência Política, Simone Veil seguiu carreira na magistratura e, mais tarde, na política. Em 1974, tornou-se Ministra da Saúde de França, um cargo a partir do qual mudou para sempre a vida das mulheres francesa s. Foi a principal responsável pela legalização do aborto em França, enfrentando forte oposição de setores mais conservadores. A "Lei Veil", aprovada em 1975, garantiu às mulheres o direito de decidir sobre os seus corpos, representando um marco fundamental na luta pela igualdade de género.
Contudo, o seu impacto não se restringiu ao seu país de origem, transcendendo fronteiras. Em 1979, tornou-se a primeira mulher a presidir ao Parlamento Europeu, um cargo que desempenhou com um compromisso inabalável com a integração europeia. Defensora de uma Europa mais unida e solidária, Veil acreditava num modelo federalista, promovendo políticas que reforçassem a cooperação entre os Estados-membros e garantindo a proteção dos direitos fundamentais a nível europeu.
Simone Veil continuou a sua trajetória política e intelectual ao longo das décadas, sendo, designadamente, nomeada para o Conselho Constitucional francês. O seu legado ultrapassa fronteiras e gerações: é um símbolo de resistência, justiça e progresso. Em 2018, foi homenageada com a sua trasladação para o Panteão de Paris, ao lado de outras figuras ilustres da história francesa.
No Dia Internacional da Mulher, a memória de Simone Veil lembra-nos que a luta pela igualdade de género não é uma batalha do passado, mas um compromisso contínuo. O seu exemplo inspira-nos a construir uma sociedade mais justa e equitativa para todas as pessoas.
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