top of page
Sofia Dias

mãe, podemos deixar de comprar laranjas?

mamã,


consigo ouvir os pássaros lá fora e o sol já me disse olá, deves estar a acordar agora, eu não consigo dormir.


o meu corpo sente se cansado, mas eu não consigo fechar olho. eu sempre fui horrível para adormecer, eu sei que sabes isso. sei que tu e o pai me lavavam às 3 da manhã a andar de carro, porque acham que ajudava e eu adormecia, mas assim que estacionavam acordava.


mas agora é diferente, mãe. eu quero tanto dormir, estou farta de acordar no dia seguinte e não saber viver por causa da dor de cabeça.

não sabia que ia ser assim. ninguém te dá um aviso e eu sei que tu também estás confusa. o pai pergunta me sobre o que falo nas consultas e eu não lhe quero dizer. vocês ficam com uma cara tão assustada e apavorada quando digo alguma coisa, não gosto de vos ver assim.


não era suposto isto acontecer. era suposto não me acontecer a mim. era suposto eu ser a amiga que está sempre bem. e sei que quem se sente mal devia pedir ajuda e não se devia envergonhar disso, saúde mental devia deixar de ser tabu, mas aconteceu tudo tão rápido e de forma tão abrupta. ninguém me deu um aviso. ninguém me gritou nada. não me deram sinais nenhuns. não me notificaram nem nada. não me disseram: “vamos iniciar a fase preparatória da decisão”. encaminharam-me para o escuro, enquanto eu me distraia com a luz refletida na água da piscina.


e o dinheiro… o dinheiro é vil. a quantidade de dinheiro gasta nisto. tu dizes-me: “nós só queremos que fiques bem. só te queremos ver feliz, amamos-te muito.” e eu sei disso, mãe. sei que queimavas metade da casa se isso significasse que eu poderia continuar no psicólogo e no psiquiatra e receber ajuda, mas custa-me saber que tens que causar um incêndio para eu acalmar a tempestade do meu cérebro.


disseram-me que precisava disto para deixar de discutir comigo. li-lhe isto:


“Penso em como estar a explicar para mim própria o processo da dança do meu cérebro fazer parte da dança do meu cérebro. Penso em como o que acabei de pensar poder ter sido uma redundância. Penso que tenho de parar de censurar os meus pensamentos. Penso em como ter pensado que tinha de parar de censurar os meus pensamentos censurou o meu pensamento que me chamou de redundante. Penso que não devo pensar em coisas muito complexas. Penso que o meu cérebro é incapaz de o fazer. Penso que o meu cérebro ser incapaz de o fazer não é necessariamente uma qualidade. Penso que o meu cérebro, às vezes, é cansativo de amar. Penso que para amar o meu cérebro, às vezes, é preciso dar-lhe um sedativo. Penso que tocava no Pedro e deixava-o tocar-me, porque amava o cérebro dele, da mesma forma sensual como amo palavras. Penso que, nos próximos dias, não volto a comer laranjas.“


a reação foi: medicação. só de ler isto agora o meu cérebro apita, que teia. espero que resulte tudo. tem que resultar. o primeiro dia de medicação foi horrível, deixou-me enjoada, com uma enxaqueca e são exatamente 4:44 (ontem fui dormir às 6, eu devia ter sono).


nestes momentos, apetece-me desistir de tudo, do jur.nal, dos projetos, das merdas para o currículo, eu sou demasiado fraca para isso tudo, mamã. eu quero desenhar-te em bonecos palito outra vez. é isso que quero fazer com todas as horas do meu dia, enquanto bebo sumo de laranja joy de um copo com uma palhinha, daquelas que dá muitas voltas, como o copo da minnie que trouxemos da disney em Paris.


não sei porque estou a escrever isto, sabes? acho que há uma espécie de desejo em querer ser salva no que escrevo. de que me venham buscar e me levem a passear. de que me levem para um sítio onde não tenho que ser bonita, onde não tenho que ter miolos e onde me delicio em doces nadas. a minha escrita grita desesperadamente por festinhas na cabeça e empatia. mas não interessa. a razão não interessa. estou farta de tentar perceber o porquê de tudo. desta vez, não quero metáforas, nem laranjas, nem coisa que o valha. não aqui. aqui não há isso. aqui só há cansaço para andar a chamar metáforas, apesar de eu não me mexer um centímetro. a laranja foi comida pelo cão da tia. não há noite. só há o sol que me queima a cara e me faz um escaldão no nariz.


47 views

Recent Posts

See All

Lápide

Comments


bottom of page