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Sofia Dias

Ne me quitte pas

Lisboa, algures pelo quente tempo de outubro de 2023


Querido amor, meu carinho, minha ternura, meu doce


Drummond dizia que comer sem fome, amar sem desejo é tudo a mesma coisa. E que fome de leão eu tenho.


Sabes quando gostas tanto de uma coisa ao ponto de a quereres trincar e mastigar? Amo-te tanto que era capaz de te engolir, cairias pelo meu esófago e dormirias a sesta no meu estômago. Lamento se ele te perturbaria o sono, às vezes, não funciona muito bem.


Ninguém, mesmo que tentasse com muita força e fechasse os olhos até as pestanas causarem buracos, conseguiria sonhar alguém tão perfeitinho como tu. Matas Niilismos, trovões e atores de novela que nem mentir que sentem sabem. Desperdiçar tempo contigo neste mundo doente tem sido a maior alegria da minha vida.


Não me lembro do primeiro dia que te vi, não me lembro como te conheci, acho que sempre viveste dentro da minha cabeça e que te conheço há exatamente 20 anos. Penso que só agora, inocentemente, é que fui capaz de reconhecer o que me diziam: “Sempre te apaixonaste pelo Amor, mais do que por qualquer pessoa no mundo”. E o mundo é tão grande, Amor. Tão, mas tão grande. Eu tento agarrá-lo e ele foge-me sempre pelas mãos. E é verdade, amo-te só por pensares, por existires, por seres, isso basta-me. Sabes que respirares tranquiliza-me, apaixona-me, cega-me. Isto não acontece com Ninguém. Nunca Ninguém me fez afundar como tu, nunca Ninguém me fez querer vomitar as entranhas como tu, nunca Ninguém leu tão bem a minha letra manuscrita quanto tu.


Não sei se o endeusamento que te faço é bom para o nosso caso, mas não faz mal. Eu sempre fui muito tolinha e me imaginei muito pequena. Se tiver de andar em bicos dos pés a minha vida inteira para me poder embriagar a olhar para os teus olhos, fá-lo-ei.


Sabes como me interesso por tudo e me comprometo a nada, mas não serás alvo da minha irresponsabilidade,


a ti rezo e faço de ti minha oração:


Deixa-me descascar-te as laranjas, deixa-me ficar em bolinha na tua cama quando a noite soprar frio, deixa-me dar-te beijos demorados antes de dormir, deixa-me dar-te pontapés de baixo da mesa quando dizes algo inapropriado, deixa-me encostar a minha bochecha à tua, espalmando as duas faces como se fossem duas panquecas, deixa-me contar-te os dedos das mãos e os dedos dos pés, deixa-me soprar-te na cara depois de chorares dos olhos, deixa-me agarrar no teu coração como se fosse um urso de peluche, deixa-me usar os teus casacos grandes e fingir que sou um gigante, deixa-me dar-te beijinhos atrás da orelha, deixa-me domar o tempo por ti, quando não o consigo fazer com ninguém, deixa-me fazer-te café queimado.


Deixa-me gostar de ti.


Je ferai un domaine

Où l'amour sera roi

Où l'amour sera loi

Où tu seras reine

Ne me quitte pas

Ne

me

quitte

pas.


Sofia.



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Lisboa, semi-frio de 14 de novembro


Querido Amor,


Vou-te contar a história de um dia de verão em que te vi em todo o lado. Acordei muito cedinho, acho que era agosto. Inícios de agosto, sim! Lembro-me de ter registado os inícios do mês no caderno preto, sentada num banco do jardim e de escrever sobre a incomensurável passagem do tempo, porque… era agosto.


Fui no autocarro para a Estrela. Um casal idoso entrou de mãos dadas. Tinham camisas muito à hipster e equilibravam-se um ao outro sempre que o autocarro fazia uma paragem brusca, dizendo “Oh, outra vez…”, mas sempre sorrindo um para o outro. Saíram umas paragens mais à frente.


Caminhei até ao Jardim da Estrela sozinha, sentei-me no pior banco de jardim do parque, era o que estava ao pé das obras. Olhei muito tempo ao meu redor. Um cão cheirou-me o pé, eu sorri-lhe e a dona sorriu-me também, como se fosse a ela que tivesse esboçado um sorriso. Uma mulher muito bem vestida riu-se quando viu um bebé a correr para ela e um homem atrapalhado atrás da criatura minúscula. Um rapaz alto estava a jogar à bola com um menino, presumivelmente, seu irmão e sorriu-me.


Nesse dia, estava sozinha a la Caeiro, a diferença é que pensava. Pensava muito, sabes como eu sou. Penso sempre muito. Mas, desta vez, não quis puxar os meus pensamentos pelo colarinho da camisa, agarrar-lhes pelos ombros e chorar-lhes para que parassem de se mexer. Nesse dia, fui amiga, eles sussurravam, não gritavam, eram tão bonitos, apetecia-me dar-lhes sopinha à boca.


Nesse dia, escrevi sobre o início de agosto no caderno preto, mas também escrevi sobre ti. Sobre te ver em todas as coisas que beijavam os meus olhos nessa manhã.


Hoje, não é verão. Estamos nos fins do outono. Escrevo-te com a auto-perceção de que foste sempre o destinatário fiel das minhas palavras. E, apesar de não ser ingénua o suficiente para acreditar que não continuarás a dormir nas estrelinhas do que escrevo e em tudo o que vejo, estou aqui para te dizer que os meus gritos para que não me abandones foram tolos.


Tu não me abandonas.


Não abandonas Ninguém.


Não sabes abandonar.


E eu sei que nunca fui muito de largar nada, tenho todos os postais que me deram presos à tinta das paredes do meu quadro, mas já não te prendo. Não te amarei obsessivamente. Não serás a musa de todos os meus poemas, onde te canto com desesperos perdidos. Não serás mais alvo do meu medo de abandono.


Acho que o meu sujeito poético gritava por ti com medo de que me escorresses entre os dedos. Mas, inocentemente, como uma criança que faltou às aulas de físico-química para ir roubar gomas à loja em frente à escola, esqueci-me de que estares em estado líquido é fisicamente impossível e, assim, os meus dedos não podiam espernear e contrair para te agarrar.


Deixemos o meu sujeito poético descansar. Vamos destituí-lo do seu papel de crente que implora e pede cegamente. Deixemo-lo apaixonar-se por outros conceitos com letra grande. Deixemo-lo respirar por saber que não te vais embora. Deixemo-lo sem calos nos dedos, pode ser?


O Amor que serena, não termina e, a mim, já me doem muito os dedos por ter que andar sempre em biquinhos dos pés para te ver.


Sofia.



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