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Rita Esteves

O comboio da vida não tem paragens


É comum presumirmos, na nossa inocência, que existe apenas um de nós no universo.


Por incrível e inacreditável que pareça, existem vários e diversos eus a vaguear, por aqui e por ali, a criar laços e a interagir com o mundo, todos dentro de um mesmo ser, um mesmo complexo de carne e osso.


Talvez seja por esta ideia de multiplicidade interior que, sempre que me sinto obrigada a falar do ser-humano, o descrevo como diverso, multifacetado, e, até mesmo, fragmentado.


Acredito vivamente que cada um de nós possui muitas vidas, muitos eus a coexistir dentro de si (nem sempre em harmonia). Alguns são companheiros de longa data, habitam esta carcaça terrestre desde o primeiro momento, e, dificilmente, desaparecerão antes dela. Outros, mais tímidos, apenas aparecem quando lhes convém, preferem manter-se longe dos holofotes do momento, e deixam as luzes da ribalta para os mais rotineiros. Há ainda aqueles que desconhecemos, que ainda não se apresentaram, mas que, eventualmente, se mostrarão para demarcar uma nova etapa da nossa vida.


Apesar de múltiplos, todos desempenham uma função, todos têm o seu lugar dentro de nós. Excluir um seria chacinar um pedaço daquilo que consideramos ser. Todos os momentos, sentimentos, pensamentos e ações associados cairiam num sono profundo, uma lembrança daquilo que outrora fomos.


Mas é necessário, se não crucial, o conjunto completo para fazer a máquina funcionar. Vejamos: um comboio apenas funciona com os seus maquinistas. Sem eles, a locomotiva permanece imóvel, estancada no tempo e no espaço. No entanto, já que pegámos nesta metáfora, podemos ir mais longe, estender o olhar para as suas carruagens, os seus passageiros.



No comboio da vida transportamos memórias e vivências, mas também pessoas, que, de alguma forma, se destacaram pelos vestígios que deixaram para trás, com cada um de nós. Cada parte de quem somos dita uma porção do destino final destes passageiros, tem a inevitável responsabilidade de lhes assegurar o lugar correto e garantir uma confortável estadia. Caso contrário, o que os impediria de sabotar a nossa locomotiva e tornar a viagem mais morosa e difícil do que é necessário?


O comboio da vida não foi concebido para efetuar paragens. O seu ritmo deve ser constante, focado no progresso, de forma a atingir o destino último de todos os seres humanos. Mas, por vezes, a máquina sofre as suas interferências, avarias e coisas do tipo, nas quais raramente possuímos mão: fazem parte das facetas do destino. É aqui que nós, múltiplos e diversos, entramos para cumprir a única tarefa que nos foi incumbida: manter a máquina a funcionar até à estação final.


Mas o comboio é, mais uma vez, apenas uma metáfora, um recurso estilístico que os escritores sempre tiveram um especial apreço por utilizar. Existem outras formas, mais cruas e insípidas, de descrever a vida e as suas reviravoltas. Prefiro manter este panorama vago e criativo, garantir que cada um retira a interpretação que acredita ser mais indicada, que se encaixa melhor às suas vivências.


Retiro-me apenas com uma questão à qual ainda não encontrei resposta adequada: o comboio da vida não funciona sem maquinistas… funcionará sem passageiros?



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