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Olavo Costa

O desenho como a verdade do Sileno


O ato de desenhar é apenas uma outra maneira de filosofar, talvez até mais pura, pois prescinde das dificuldades e limitações que o uso da linguagem apresenta. O professor, filósofo e ex-baixista dos Mata ratos, Antonio Caeiro, frisa que o significado etimológico, ao contrário do que nos ensinam no secundário, Filo-Amor e Sofia-Conhecimento, ou seja um amor por conhecimento, é na verdade uma tradução feita a partir do latim, que por sua vez deturpou o significado original da palavra do grego antigo. Filo traduz-se por obsessão/necessidade e Sofia por transparência/claridade.


Para inicialmente clarificarmos esta questão e debruçarmo-nos sobre o ato de desenhar, irei apropriar-me do seguinte excerto do livro “O Nascimento da Tragédia” de Nietzsche.


“Existe a velha lenda segundo a qual o rei Midas perseguiu por muito tempo sábio Sileno, companheiro de Dioniso, sem o apanhar. Quando por fim ele caiu no seu poder, o rei pergunta o que haveria de melhor e mais excelso para o ser humano. Inflexível e imóvel, o demónio silencia; até que, coagido pelo rei, solta com um riso estridente estas palavras: «Estirpe miserável e efémera, filhos do acaso e da fadiga, porque me obrigas a dizer-te o que para ti é mais proveitoso não ouvir? O melhor é para ti totalmente inatingível: não haver nascido, não ser, nada ser. Mas a segunda melhor para ti é morrer em breve.” 1a



Fig. 1: Fresco da máscara de Sileno, Villa Of Fannius Synistor, Pompeii.



O Sileno poderá representar o aparo e/ou o stiletto que percorre a confusa floresta abrindo o caminho à sua frente com bruscos, mas calculados movimentos, enquanto o Rei Midas (desenhador/artista), o segue loucamente obcecado pela informação preciosa que este tem em sua posse. Ao capturar o elusivo Sileno, acabando o percurso, finalizando a obra demarcada na floresta pelas flores pisadas e a terra remexida, o Rei Midas depara-se com o horror da verdade e perde todo o seu propósito naquele momento de clareza.


Penso que a representação da figura humana decorre de uma necessidade de procura inventiva denominada de desocultação: quando o ser humano impregna a terra com o mundo, ao colocar a sua própria imagem na realidade, o ser humano está a questionar e/ou a afirmar a sua posição face ao exterior e ao interior.


Segundo uma antiga fábula romantizada, escrita por Plínio, o desenho foi criado pelo amor. Uma figura feminina apelidada de “Amante Coríntia” deparou-se com a seu amado a relaxar e/ou a dormir, ele estaria, segundo alguns relatos, prestes a partir para a guerra e possivelmente nunca mais voltaria. Tipicamente representados numa sala sozinhos apenas iluminados pela luz de uma chama, a amante desenha os contornos da sombra do amado, que está a ser projetada na parede atrás do mesmo, delimitando o seu perfil. Aqui o desenho é utilizado como uma forma de imortalizar a presença do seu amor, tirando do mundo natural a vida do amado e preservando parte dele para a posterioridade. Uma intervenção Apolínea que tenta subverter a ordem natural da realidade. Analisando esta história a fundo encontramos paralelos inquestionáveis com as pinturas rupestres da Cueva De Las Manos na Argentina executadas entre 13 000 e 9500 anos atrás, composta por diversos stencils de mãos humanas. Por muitos considerados os mais antigos retratos/autorretratos executados, feitos numa caverna escura iluminada pelo fogo, pensava-se que pelo tamanho das mãos pertencessem a mulheres e/ou crianças, talvez mães que temessem a morte precoce dos seus filhos, ou até mesmo que temessem o seu próprio desencarnar. Fazendo menção a como foi apelidada de Apolínia a história da “Amante Coríntia”, teremos de respeitar as regras impostas pelo pré-socrático Heráclito e nomear a manifestação artística da Cueva De Las Manos de Dionisíaca; sem grande receio estético afirmo-o. A composição desordeira e conflituosa, a luta que provavelmente ocorreu para conseguir os melhores lugares da parede da caverna, as mãos que sobrepuseram e taparam outras mãos: um claro sinal da atividade do deus Dioniso ou até do seu fiel seguidor Sileno. Como referido, as mãos foram executadas com a técnica de stencil, algum tipo de aglutinante de origem animal misturado com carvão, óxido de ferro, ou giz, que era inserido na boca e depois soprado em direção à mão. Ambas as histórias demarcam uma forma numa superfície para tentar sobrepor o vazio/dor emocional que se seguirá à partida dos seus amados. Para fazer justiça à vontade aristotélica de encontrar a medida do meio, teremos de deturpar ambas as histórias em função de uma ficção realista que acalme os ânimos extremistas de Apolo e Dionísio. Imaginemos agora a “Amante Coríntia” a soprar tinta em direção ao perfil do amante que repousa antes da sua partida. O resultado seria na sua essência idêntico, um stencil do perfil do amante ficaria desenhado na parede da gruta/domus, mas ao acordar o rapaz do seu sono, num momento de raiva e cegueira, este levanta-se e agride-a, confuso e magoado, pois as ações primitivas da amante em muito rebaixam a perfeição apolínea inerte no amante.



Fig. 2: Joseph Benoit Suvee, The Invention of the Art of Drawing, 1791. Groeningemuseum, Bruges



Fig. 3: Cueva de las manos, Santa Cruz, Argentina


A “Amante Coríntia”: o amor e o sexo


A “Amante coríntia” é uma manifestação de Eros (o deus do amor). Não é uma deusa, mas também não é mortal, esta existe entre o sábio e o ignorante, pois apresenta uma necessidade de filosofar. Uma figura que tenciona trazer as preces dos homens aos deuses (imortalidade). Ao querer imortalizar o seu amor, o objeto de desejo, ela age de acordo com o que procura, ao soprar os pigmentos na direção do amado ela pergunta, e ao ser agredida obtém como resposta os resultados que estão de acordo com os conhecimentos do sábio Sileno. N’O Banquete de Platão, o tema central é a indagação sobre o que é o amor e a resposta mais sábia é relatada por Sócrates, mas atribuída a Diotima, figura ausente que se acredita ter sido inventada pelo mesmo. No decorrer do simpósio todos acreditam que Eros é um deus belo e sábio, mas no discurso de Diotima essa ideia é

desmitificada pelo facto de que os deuses não desejam o que é bom e belo porque a sua essência já participa nessas ideias, enquanto Eros efetivamente procura esses atributos; ou seja, este não pode participar neles, não pode possuí-los: alguém que já é bom não procura ser bom, simplesmente o é nasua essência. Em consequência disto, Eros é rotulado como o meio-termo, pois se fosse ignorante(mortal), não teria consciência destas ideias; ele é um filósofo, ele é um artista. O artista é como Eros, o génio que medeia entre deus e o ser mortal. Procurando aquilo que deseja.


O amor tão debatido neste livro é uma obsessão, uma doença crónica que nos aflige e a “Amante coríntia” é uma iluminada que está a tentar engravidar, ao contrário da virgem Maria que engravidou por ouvir as palavras de Deus, uma personagem passiva e entregue à vontade de terceiros, a nossa amante é uma agente ativa, uma mulher de ação.


“...De facto, ó Sócrates, todos os homens têm a sua fecundidade segundo o corpo e segundo a alma, chegada uma certa idade, a nossa natureza deseja gerar....”2a


Dentro das suas limitações, o mundo natural ostenta imortalizar-se por meio da procriação, deixando sempre um indivíduo novo no lugar de um velho. Todos os seres vivos participam nesta ideia de imortalidade, mas a espécie humana está munida de uma psique, um espírito que só nele habita que o impulsiona a ambicionar uma perpetuação imaterial. E é neste sentido que a “Amante coríntia” tenta engravidar. Mas esta é uma interpretação otimista e apolínea de caracterizar o propósito da nossa procura. Como contraponto dionisíaco e oferecendo uma visão mais pessimista, intento investigar a questão do erotismo, pois até este momento ainda só indagamos sobre o amor. Escrevendo de modo mais lato, a questão que está a ser trazida é: serão o amor e sexo a mesma coisa, em função da verdade do Sileno? Não nos limitemos pela produção de algo para atingir a imortalidade, podemos também encontrá-la no nosso interior.


“O erotismo é, na consciência do homem, aquilo que nele põe em causa o ser.”3a


O ato de desenhar possui muito em comum com o erótico, nomeadamente quando se destina ao estudo da figura humana. Georges Bataille propõe uma visão interior do erotismo e começa por afirmar que entre a existência de cada indivíduo existe uma descontinuidade vertiginosa. O vazio entre cada ser humano é o nada. Não existe nenhum percurso num lugar onde não existe essência. Transgredir da descontinuidade para a continuidade é o que o erotismo procura. Cada ser existe preso e confinado na sua existência, mas este não a suporta, passar pelo tempo é um castigo. O processo de transgressão apenas ocorre devido ao fenómeno estético imposto pelo ser racional, pois a continuidade pertence ao mundo dionisíaco anti-platónico. Platão com o seu positivismo, que depois verte para o cristianismo, acredita na perpetuação da vida através de meios espirituais, pois a imortalidade é conseguida através do meio corporal com a reprodução e a alma subsequentemente segue para o mundo das ideias. Esta noção do “depois” é uma praga que o pessimismo não aguenta suportar, não existe um “a seguir”, logo, a imortalidade do indivíduo só pode ser atingida em momentos específicos durante a vida do sujeito. O conceito de transgressão implica que o homem abandone o fenómeno estético, o seu estado racional e se entregue à continuidade que apenas pode possuir durante breves momentos. Durante o ato sexual dá-se a ocorrência de um fenómeno apelidado de “petit mort”, ou em português a pequena morte, no clímax do ato. Aquando desta ocorrência, dá-se a refração da consciência humana, o indivíduo entra em colapso e perde noção da sua identidade, do seu passado e do seu futuro, entrega-se ao uno primordial.


A demora na execução do desenho é fatal para a sua essência. Apenas a espontaneidade calculada ou não do momento fará do desenho um ato honesto. Tempo livre é o luxo do homem racional, um benefício desonesto para com a natureza animal inerte no corpo e na psique (consciência). A pintura, ou melhor, o ato de pintar está predestinado antes da primeira pincelada ser lançada. A pintura é um ato apenas otimista, e não estou aqui a diferenciar o desenho da pintura meramente por temas ou materiais, nem mesmo por tempo de execução. A invisibilidade que preenche cada um dos conceitos é que os separa. A pintura é otimista e o desenho é pessimista, essa é a diferença independentemente das intenções do artista. O tempo é uma ilusão humana e acreditar que podemos utilizá-lo como queremos é uma mentira. Andar é como pintar uma paisagem ou um retrato: achamos que temos tempo para dispensar, refletindo enquanto respiramos o ar, o precioso oxigénio; a maior ironia do mundo natural. O desenhador deverá estar sempre com falta de ar, como se estivesse perpetuamente a afogar-se. Quando o medo infeta a psique as respostas são honestas. Correr é uma certeza vinda da pré-história, o homem primitivo a fugir dos predadores ou a perseguir a sua presa, a sobrevivência subsiste à base da velocidade e do momento decisivo. A obra demorada e/ou atrasada não sobrevive é perdida para a violência da savana primordial Africana.


Quando a produção de uma obra se estende por vários dias, meses ou anos ela já está destinada a falhar. Sempre que o artista pousa os materiais e volta a pegar neles para continuar a trabalhar, a disposição atmosférica do atelier está completamente alterada, tudo muda, é como se ele estivesse a começar de novo. Quando tropeçamos ao retomar o andar o caminho altera-se. Este incessante parar e retomar deturpa a ideia inicial e faz dela uma mentira (uma religião), em que acreditamos demasiado e nos estagna, lentamente restringindo o nosso círculo de procura. Claro que se procurarmos perfeição gráfica e estética por vezes a obra terá que ser trabalhada durante um longo período de tempo, pois só assim se atinge a resolução desejada. Que se mantenha na ilusão então, morrerá ele e a obra de qualquer modo. O privilégio pessimista não é o saber, mas sim a perceção. A execução rápida e desinteressada será mais verdadeira, feita num único momento de fuga, o golpe que matará a presa, degolando-a e extraindo a sua preciosa vontade. O sangue que cobre o suporte mostrará o real intento do feroz desenhador. Não estando aqui a principiar uma veneração cega a exercícios de gestualidade e afins, tipicamente reconhecidos pela rapidez de execução, pois muitas vezes estes serão os mais desonestos.


O desenho pessimista é definido pelo momento da verdade antes da morte corporal e espiritual, ou seja, está limitado ao tempo que o descarnar pessimista durar (popularmente definido como a concentração). Se a obra não for concluída nesse período, morrerá de imediato. A arte tem de ser feita num só momento, o atraso destrói a concessão artística. O problema das artes demoradas reside na sua essência de atraso temporal.



O verme artístico


Agora, já algo distantes do pensamento inicial, procuramos concluir. O artista pessimista deverá ser um verme. Na reprodução assexuada reside a liberdade do criador, não é requerida a imensa pletora necessária para a reprodução sexual, nem uma terceira entidade. O fetiche da criação é a morte da identidade, até este ponto já concluímos. Assim que a abundância de vontade canibalizada excede os limites da pele do verme gordo, começa a verter num momento crítico de crise/deleite de egoísmo artístico, o verme pode assumir duas disposições: o luxo do homem racional ou a embriaguez do vagabundo. Ambos foram as causas da morte de Deus (do propósito), e tudo entre eles são meros seguidores do já falecido fenómeno estético. Nenhum artista deve advogar estas causas do meio senão é enganado a agradar terceiros. O artista não deve executar obras porque lhes são pedidas ou porque as quer fazer, a obra em si é que deve impor-se ao artista. No mundo animal a reprodução é preferencial nas estações de abundância, na espécie humana é preferível começar uma família em tempos de prosperidade económica. Nestes exemplos existe uma escolha e uma decisão, o uso do livre arbítrio. Os vermes assexuados quando mutilados pela ação de forças externas não morrem, eles multiplicam-se. A primeira entidade morre e duas novas surgem, mas estas são meramente a deturpação da forma inicial. Foi-lhes imposta a criação, não sob o signo da liberdade do livre arbítrio, mas sobre a única liberdade que existe no mundo pessimista, a reação. A ação é sempre imparcial apenas controlamos a nossa reação. O artista pessimista não deve ter mão no volante, deve-se deixar mergulhar na caverna primordial.




 

1a - NIETZSCHE, Friedrich, “O Nascimento da Tragédia e Acerca da Verdade e da Mentira”, pag.34;

2a - PLATÃO, “ O Banquete”, pag. 127;

3a - BATAILLE, George, “O erotismo”, pag. 33.



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