top of page
André Neves

O Rapaz Que Vendeu Versos ao Diabo

I

Vagueio errantemente pela cidade nesta glamorosa tarde de verão. Os pequenos pardais cantam jubilosamente, enquanto o brilho alaranjado do sol começa a dar mostras do seu vigor, sem que por isso uma leve e fresca brisa deixe de dar, simultaneamente, ar de sua graça. O céu pinta o rio com um tom tão resplandecente que não há gaivota que se prive de, no seu níveo dorso, refletir o brilho azulado da água cristalina. A placidez do ambiente contrasta com o frenesim no qual se encontram todas as pessoas que por mim passam, assemelhando-se a marionetas ambulantes, comandadas por um sujeito constituído por números e ponteiros. A natureza derrama uma lágrima sempre que os relógios não nos permitem admirar a sua beleza, nem que seja por breves instantes. Ao invés da maioria, para além de não ter relógio, não me privo da livre comunhão com o que de mais apolíneo existe no mundo em que fomos despejados – talvez seja uma forma de não permitir que me roubem a alegria de sentir na plenitude tudo o que me rodeia. O tic-tac dos relógios transforma os homens em máquinas com momentos específicos para sentir e, quando deixam estes de sentir porque soou um tic-tac a mais, deixam de ser homens.


Entre a calçada moída e os sapatos transeuntes, reparo num pedaço de papel sujo e rasgado pelas solas que a todos os instantes a desgastam. É uma página de jornal. Prontamente a apanho, e nela leio que uma companhia de teatro procura atores para representar Hamlet. Ainda ontem à noite fui o príncipe Hamlet sobre o banco onde costumo pernoitar. O sangue da arte não pode ser menos do que pó de estrelas. É essa a única explicação para que um sem-abrigo se sinta um príncipe através de meras palavras.

Caminho até à morada indicada pelo jornal e chego sem dificuldade ao meu destino. A porta encontra-se entreaberta, pelo que entro cautelosamente e insiro-me na fila, nem grande nem pequena, que porventura me separa da oportunidade de comer nos próximos dias. Um calor abrasador, motivado tanto pelo clima próprio da época quanto pela aglomeração de gente num espaço exíguo, mancha-me de suor a camisa já amarelada.

Chega, enfim, a minha vez. Tento disfarçar o tremor que me percorre as pernas ao contemplar a sumptuosidade do jurado – alto, espadaúdo, de semblante fino e cabelo grisalho. Tem a aparência de um nobre, tanto pela postura altiva como pelo refinado traje, e ainda pelo seu pelo típico e arcaico anel aristocrático.


— Julga que vou observar a sua investida? — pergunta, olhando-me de soslaio.


— Porque não? — retruco, fitando-o.


— Porque descreio em criaturas míseras! — vocifera altivamente, balançando a cabeça para trás num jeito efeminado.


— Como pode o senhor conjeturar que me incluo nessa categoria?


— Até um olho míope o perceberia — responde com desdém —, o menino não passa de um sandeu! Apresentar-se perante mim de pele imunda e vestes esfarrapadas… Pelo amor de Deus! Sabe porventura quem foi o senhor meu avô? Que verme petulante me saiu este plebeu horroroso! Saia-me da frente, não impurifique este chão com os seus pés encardidos!


Uma dor surda entranha-se-me no corpo. Sinto-a enraivecida, fitando-me tão intensamente que me despe. Contempla-me sombriamente a alma, penetrando-a de seguida como quem com uma farpa penetra um touro, afogando-me num tempestuoso inferno. Olho para as paredes sujas e rachadas vendo-me. Sinto que cadeiras coxas têm as minhas pernas. Sou uma porta cansada de bater infindavelmente, obrigada por um vento inacabado. Um desespero enlouquecido em mim cresce, no entorpecido e no grotesco me faz ver, me faz sentir. Doente me torna a consciência de que este ódio lancinante me transforma a nobre alma em plebeia, alma outrora semelhante às vestes do jurado, mas agora, pelo rancor, similar à sua índole. Que consciência tão aterrorizadora quanto as trevas da cave do Demónio! Ah, consciência que me tornas fétido! Morre! Morre e contigo leva aquele fidalgo pretensioso! Morre!

Saio e percorro o caminho inverso ao que trilhei para aqui chegar. Por vezes na vida há que voltar atrás, já com a consciência de que uma das frentes é mais retrógrada do que o ponto inicial, e depois intentar percorrer uma trajetória divergente, na esperança de que o destino de tal rumo seja mais clemente. É-me imprescindível esquecer este incidente, que me suscitou desejos horrendos com os quais não quero conspurcar a minha alma. O que eu não daria para que a perceção de que não sou tão bom homem quanto gostaria me abandonasse…


Estes nobres, que nobres nasciam e nada de grandioso (ou sequer útil) precisavam de fazer para que se lhes tivesse estima, sempre foram muito soberbos. Ao que parece, um grupo substancial de plebeus não compreendeu ainda que, desde 1910 (ano apenas triste pela morte de uma das maiores figuras da literatura mundial), os títulos nobiliárquicos nada representam. Devido a tal ignorância, ou ao péssimo e anacrónico hábito suscitado pelo complexo da inferioridade, continuam a tratar os de sangue azulado como se superiores fossem. Enfim, aquele senhor tem tanto de valor quanto de sangue azul. Julgo até que o que lhe corre pelas veias seja negro, e por momentos fez com que o meu sangue se enegrecesse também. Contudo, mais pena dele tenho que de mim, pois o meu voltou a avermelhar-se em instantes.

A tarde vai-se metamorfoseando em noite e o céu torna-se ainda mais belo, tal como o ledo cantarolar dos passarocos que esvoaçam dançando à volta do velho banco onde me aconchego, do meu velho banco. “Talvez apenas consiga ser o príncipe Hamlet em cima de ti”, penso alto. Abro um livro que alguém cuspiu para o chão numa noite destas, um pequeno e sublime livro, de seu nome Noites Brancas. Li-o todo ontem, assim que o encontrei; contudo, elevou-me de tal modo o espírito que o lerei hoje uma vez mais. Costumo ler quase tudo o que a vida me oferece e, quando tenho a sorte de ser presenteado com belas palavras que, em conjunto, formam pensamentos elevados, fico com o dia feito; caso contrário, aprendo como não se deve escrever. Dostoiévski foi um génio, portanto não tem grandes dificuldades em fazer-me o dia. A alma vai ficando saciada, mas para o estômago não tenho nada. Amanhã, bem cedo, procurarei novamente um novo trabalho.

Desce uma noite tão deslumbrante quanto o sonho mas mais fria do que o mundo, e apenas me mantenho minimamente aquecido porque não me esqueci de trazer as mantas da casa de onde me despojaram. Um homem perde o pai e a herança e já não é ninguém. O seu nome era Jorge, um pequeno comerciante de gado com lucros consideráveis, lucros esses que lhe permitiam pagar-me um salário razoável. Trabalhávamos e vivíamos juntos. Era um bonito homem, tanto de pele quanto de caráter, mas tinha um temperamento eminentemente prático. Em fevereiro, a doença que o levou começou a fazer-se sentir cada vez mais intensamente, até que a sua vitalidade declinou por completo e, em poucos meses, morreu. Suspeita-se que foi a tuberculose que o levou. Tentei salvar o que era nosso, mas não fui bem-sucedido. Ao meu inexistente jeito para negócios se uniu uma terrível praga que nos colheu mais de três quartos do gado, e o nosso património foi sepultado. O desgraçado ainda viveu tempo suficiente para me ver perder tudo. Jamais esquecerei o seu rosto, marcado pela mágoa e encharcado em lágrimas. Viu o seu único filho perder, em cinco meses, o que construíra numa vida. E, ainda assim, entre o estado febril e a agigantada angústia, teve tenacidade bastante para me dizer que não me preocupasse, que iria correr tudo bem porque ainda tinha os meus poemas e o hipotético sustento que eles me trariam. Depois de terem estas palavras saído dos seus secos lábios, adormeceu para não mais acordar – foi como se contrariasse toda a teoria por si defendida em vida antes do suspiro que o conduziu à morte. Em tempos mostrei-lhe a minha poesia, mas, segundo ele, “o trabalho só é trabalho quando dá dinheiro”. Provavelmente as suas últimas palavras resultaram de um delírio proveniente da febre que lhe assolou o juízo nos últimos dias, ou então de uma visão divina entre a passagem da tirania dos vivos para a democracia dos mortos – um local maravilhoso e plácido, utópico, visto por Ivan Ilitch, em que cada ser é tão valorizado que o simples vislumbre da sua proximidade dá a um cego vista. Gosto de pensar que as suas palavras foram o efeito dessa contemplação luminosa, mas não creio em ideias quiméricas.


Enfim, já vai sendo tarde. Não será fácil que o sono tenha mais força do que a dor, pois embora a insensibilidade do meu pai me magoasse, ele era a pessoa de quem eu mais gostava no mundo. E eu não gosto de muita gente.




Recent Posts

See All

Comments


bottom of page