top of page
Simone Silva

O Segundo Sexo

A Mulher Enquanto Figura Jurídica


“Não se nasce mulher: torna-se.”- O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir

Seria na Bíblia que a primeira mulher, de nome Eva, tomaria por todas as seguintes o peso da culpa de carregar em si o pecado original. De tal modo, ao consumir a insolência, turvaria o seu útero com a imoralidade que lhe enchera os seios, as ancas e os glúteos, e a tornára num vulto de desejo e de pecado. Por sua culpa, como ditam as escrituras de homens santificados perante Deus, seria a mãe de todas as que nasceram cingidas ao seu erro, erro esse que afirmava a necessidade de o controlar pelo desígnio daquele capaz de resistir ao pecado, a vítima da indecência primordial da mulher, o homem.

Ora o homem assim fez. Criou o plano jurídico onde no centro se situou, do mesmo modo que se situara no centro do universo, e posicionou todos os restantes na sua órbita. A mulher, claro, uma lua em função dele, nunca um astro em função de si. É com esta conclusão, da mulher em relação ao homem, que Simone de Beauvoir formula a sua crítica à posição da mulher na história da humanidade. Na sua obra, “O Segundo Sexo”, ela começa por demonstrar o rídiculo de ter de escrever algo sobre o sexo feminino, como se fosse algo a analisar. Em contraste, o homem não sente a necessidade de se identificar, de estudar o seu papel na sociedade, de criticar o seu posicionamento. Isto, pois o homem é autoevidente. Nunca fora posta em causa a sua dignidade e o seu direito à autodeterminação. Ora, o homem não sente a necessidade de entender o que é ser homem, já que ser homem é ter a habilidade de se definir. A mulher, contudo, estuda não o que ela é, mas o que a sociedade a faz. De Beauvoir então proclama que a mulher não se define em relação a si, mas é definida pelo homem em relação a ele. Tomando uma posição hegeliana, pela dialética, ela demonstra a diferenciação primordial inerente à consciência humana: "A categoria do outro é tão primordial como a própria consciência, nas sociedades mais primitivas e nas mitologias mais antigas encontra-se a expressão da dualidade - o eu e o outro". Tal como para cada tese há uma antítese, para cada eu haverá um outro. Curiosamente, nenhum grupo começa por se estabelecer a si “sem que uma vez estabeleça o outro contra si próprio", ou dito de outro modo, sem criar primeiro a distinção entre ele e o outro. Isto é equiparável à filosofia de Freud, particularmente ao seu trabalho em torno do “líbido” ou “Eros” que junta indivíduos ditos iguais e os separa daqueles que se manifestam como ameaças dadas as suas diferenças (o amor tanto junta indivíduos comuns como os separa dos desiguais). Diz de Beauvoir que “a própria consciência tem uma hostilidade fundamental para com qualquer outra consciência, o sujeito só pode ser colocado em oposição”, gerando então a expressão binária homem-mulher.


Dada a nítida subordinação da mulher ao homem, porque é que as mulheres não disputam a desigualdade da soberania masculina? Esta pergunta (que terá de ser contextualizada, pois o livro foi escrito em 1949) surge, para Beauvoir, de um reconhecimento da falta de contestação da posição da mulher pela própria. Há, claro, exemplos contrários, mas estes não são suficientes para contrariar a regra. Ela apresenta casos em que uma determinada categoria conseguiu dominar outra durante uma grande quantidade de tempo, mas em que muitas vezes este privilégio depende da desigualdade numérica dos subordinados (a maioria impõe a sua regra à minoria ou persegue-a). Tal foi o caso dos afro-americanos nos Estados Unidos da América (nomeadamente no sul) e dos judeus perseguidos durante a maioria da sua existência. As mulheres, no entanto, não são uma minoria (sendo agora até uma maioria). Ela nota também que nas relações de subordinação, o grupo dominante tende a viver sem o conhecimento da existência do subordinado até que, num determinado momento histórico, vem a descobri-lo e por esse meio dominá-lo. Aqui se encontra outra discrepância entre a relação homem-mulher e as relações supramencionadas pois estes sempre coexistiram.


É então que de Beauvoir desenha o paralelo entre as mulheres e o proletariado. Ambos nunca formaram uma minoria ou uma unidade colectiva separada da espécie humana. Ela denota uma diferença, dizendo que o proletariado nem sempre existiu (o que, se expandirmos a nossa noção de dominação económica para além do âmbito da revolução industrial, deixa de ser o caso, tornando a classe baixa numa classe perpetuamente subordinada, equiparável então à mulher). De novo, verifica-se a não-ação feminina em contraste com o proletariado, que acabou por se revoltar (A revolta dos bolcheviques, as várias revoltas dos camponeses [aqui fora do âmbito da revolução industrial], a revolta do Haiti..). A razão de ser desta letargia é, de acordo com a autora, o facto das mulheres não terem os meios para se organizarem numa unidade (nós, o único, o eu), já que não têm passado, não têm história, não têm religião própria, não têm solidariedade de trabalho e interesse revolucionário como tem o proletariado, não se reúnem promiscuamente de modo a criar um sentimento de comunidade (como foi o caso dos trabalhadores judeus do gueto do sul de Denis), em vez disso vivem dispersas pelos homens ligadas através da sua residência, do seu trabalho doméstico e do condicionamento económico e social. Nunca estão ligadas a outras mulheres (se fazem parte da burguesia sentem-se solidárias com os homens dessa classe e não com as mulheres proletárias). A característica básica da mulher é ser “o outro” através da relação biológica (a reprodução) e da posição cultural (mãe, esposa, filha..). Simone de Beauvoir proclama então que "os dois sexos nunca partilham o mundo em igualdade mesmo quando os seus direitos são legalmente reconhecidos num costume abstracto”, chamando à atenção que mesmo com a reforma jurídica necessária, a mulher terá pela frente uma luta material que ultrapassará o suposto desenvolvimento do direito (igualdade formal e desigualdade material perpendicular). Ela termina o seu estudo com uma visão mais atual da estrutura da sociedade, onde as mulheres são agora capazes de penetrar o local de trabalho e a cultura, mas ao fazê-lo têm de concordar com partes de um determinado negócio. Têm, então, de se conformar a ser “o outro” perpetuamente, pois negar esta posição é renunciar a todas as vantagens que lhes são conferidas pela sua aliança com a casta superior. A mulher é comprada, o que leva a uma certa cumplicidade. É um caminho fácil em que se evita a tensão envolvida no empreendimento de uma existência autêntica (numa visão existencialista, como proclamou Jean Paul-Sartre, estamos condenados a ser livres, tendo então a escolha entre o caminho árduo que revela a liberdade ou o caminho cómodo que leva ao comodismo [daí o nome]). A escolha mantém-se a mesma desde 1949- cumplicidade (ratificando o estatuto desta divisão fundamental), ou revolta.


Tivemos a oportunidade de ouvir relatos de várias mulheres cujo trabalho revolve em torno da violência de género e da desigualdade social. Havia em mim, subconscientemente, o desejo de ver caducadas as críticas de Simone de Beauvoir, de encontrar um mundo onde o desenvolvimento legislativo tivesse gerado efeitos reais, palpáveis, correspondentes a uma percepção da mulher num plano de igualdade e dignidade. E sim, há melhorias na esfera jurídica feminina: o estupro já não acarreta a pena acessória de indeminização pela maculação da mulher (ou criança) violada, atribuida a uma familia agora prejudicada na procura de pretendentes. Não, a mulher já não se vê tão nitidamente empacotada, objetificada. É mais subtil, hoje em dia. Ela pode deambular, votar, protestar o quanto quiser, mas basta que entre num tribunal para que seja clarificada a sua verdadeira posição no plano jurídico. Foram feitas 591 queixas às autoridades em 2020, 582 participações em 2019, e 487 em 2018. Em 2020, 32 vítimas mortais. Isto, surpreendente ou não, demonstra um pequeno pedaço, o mero topo do iceberg, pois a grande parte das vítimas de violência doméstica nunca chegam a apresentar queixa. Eis que me deparei com a verdade: as críticas de Simone de Beauvoir são hoje, mais do que nunca, pertinentes. Quando a violência é mascarada, quando a aparência da sociedade não revela subtileza da subordinação de um determinado grupo de pessoas, estas não entendem a iminência do perigo, acreditam os slogans de igualdade, progresso e justiça, sentando-se satisfeitas. Morrerão 30, 40, 50, e entre discursos orquestrados, homens e mulheres falarão de um mundo novo onde a violência de género é coisa do passado. Triste somos, filhas de Eva. Tristes seremos, até renunciarmos a culpa e expelirmos de nós o caroço da maçã.

22 views

Recent Posts

See All

Lápide

Comments


bottom of page