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Rafael Santos

O Souto

Quintela, Norte de Portugal

Dezembro de 2019


No dia da sua morte, Alexandre César de Mello acordou por volta das sete e um quarto da manhã. Mesmo já estando reformado há uns bons dez anos, e por muito que quisesse colocar anos e anos de sono perdido em dia, o seu relógio interno mantinha o teimoso hábito da idade ativa de o despertar sempre às sete e um quarto em ponto.


“É da idade pai”, dissera-lhe certa vez a filha, num dos muitos almoços de Domingo que tinham feito no seu palacete de Sintra, “chega a um ponto da vida em que já não conseguimos dormir as oito horas seguidas. Até eu já estou a começar a conseguir dormir só sete!”.


Essa conversa entre os dois acontecera no início da reforma, quando o facto ainda o irritava. Agora sentia apenas resignação, o tipo de resignação que apenas a idade e o tempo são capazes de gerar. É a mesma resignação que faz com que o ser humano, com o aproximar da velhice, aceite que as pernas já não aguentam as longas caminhadas da juventude; aceite que o corpo, outrora vigoroso e pujante, se torne flácido, lento e mortiço; aceite que a luz brilhante da vida se está a enevoar, e que a morte, mais tarde ou mais cedo, o virá colher para o seu seio. É a resignação, em suma, que nos permite a todos viver os derradeiros anos da nossa existência com o mínimo de dignidade e paz.

Levantou-se.


Ao afastar o cobertor, sentiu o frio gelado do ar da serra entrar-lhe pelo pijama adentro, enregelando-lhe os ossos. Foi, a tiritar de frio e a tentar habituar a visão ao breu em que estava envolvido, até à porta do quarto buscar o roupão castanho-escuro que trouxera consigo de Lisboa, uns dias antes. Vestiu-o e esfregou os braços, sentindo a lã grossa aquecer-lhe as palmas das mãos e a pela que cobria. Tateou a parede ao lado da porta, até encontrar o interruptor da luz.


Demorou uns segundos até a vista se habituar ao clarão amarelado, que revelou a divisão quadrangular que tão bem conhecia desde o berço: as paredes, outrora brancas como neve, agora com pequenas fissuras e manchas de humidade que o tempo entranhara e que nenhuma lixivia conseguia lavar, nem nenhuma tinta tapar; o velho roupeiro de madeira talhada, já semigasta, representando cenas campestres; a cama de casal com armação de ferro, comprada por ocasião do seu casamento; duas mesas de cabeceira, cada uma com um pequeno candeeiro de leitura; e a janela com vista para a praça central da aldeia, com a sua pequena igreja de pedra em destaque (há muito sem padre para dizer missa), e que agora filtrava a luz da iluminação pública por entre as portadas fechadas. Em cima da mesa de cabeceira do lado onde dormia, estava um exemplar inglês, que devia datar de finais dos anos 60, do livro “Declínio e Queda do Império Romano”, que devorara na lua de mel, e que decidira reler, cumprindo a promessa de que, atingida a reforma, e a não ser em casos muito excecionais, ia passar os últimos anos da sua existência a dedicar-se à leitura exclusiva dos livros de que mais gostara, ou que o transportavam para os momentos felizes da sua vida. E aquele era um desses.


Saiu do quarto.


Da janela das escadas chegava a luz alaranjada da iluminação pública, que projetava, graças à chuva, uma claridade líquida para o corredor do primeiro andar. Depois de uma rápida olhadela pela janela, para constatar que o sol ainda só muito timidamente se começara a mostrar na paisagem montanhosa, Alexandre foi para a casa de banho. A sua figura no espelho parecia mais velha do que os seus 76 anos fariam parecer: a barba grisalha, por aparar, amarelada em torno da boca, fruto de pelo menos uns 60 anos de tabagismo (tinha como princípio de que, no que aos vícios dizia respeito, e fossem eles de que natureza fossem, o melhor era começar cedo: ou eles nos matavam e arruinavam, ou éramos capazes de lhes sobreviver e de os levar até ao fim); as rugas profundas em torno dos olhos, na testa, em redor da boca, a maioria cavadas nos últimos cinco anos; o cabelo ralo, também grisalho; a tez quase fantasmagórica; a postura curvada, quase cansada… Tudo sinais do tempo, de um tempo que não tinha sido gentil consigo e com o seu aspeto.


Quando jovem, e recordava-se muito bem desses anos, antes e depois do casamento, antes e depois de Lisboa, antes e depois do dinheiro, antes e depois de Quintela e daquela casa passarem a ser um mero local de férias e não residência fixa, a sua figura impunha respeito. Fora um mancebo alto, corpulento, com um tom de pele oliva, com uma farta cabeleira castanho-escura, e uns olhos azuis intensos, que ficaram registados em centenas de fotografias da adolescência, do casamento, da formatura, enfim, de uma vida. Enquanto saia da casa de banho e descia as escadas para o rés-do-chão, refletia, não sem algum sentido de humor, na reação que tivera quando percebeu que ia ficar careca: tudo começou quando, numa foto da lua de mel em que estava de costas, percebeu que se estava a abrir uma pequena clareira na nuca. Apesar da preocupação inicial, decidiu atribuir a dita clareira à iluminação. Mas a verdade é que, com os anos, a clareira foi expandindo, passando de uma impressão numa fotografia, para uma quase angústia, a angústia de um homem que tinha altas doses de vaidade. Só verdadeiramente deixou de se preocupar com a “questão capilar”, como lhe chamava então, num dia em que, tendo acabado de fazer amor com a esposa, se pôs a sentir a clareira com a ponta dos dedos, como se tornara seu tique, e a esposa (chamava-se Leonor), cansada da aflição em que via o marido afundar-se, lhe agarrou na mão, se virou para ele, colocando o seu corpo nu ligeiramente em cima do dele, e, olhando-o profundamente com os seus olhos castanho-esverdeados, lhe disse num tom de voz ao mesmo tempo firme e terno:


“Meu amor: lembras-te do dia em que nos conhecemos? Estava uma chuvada desgraçada, os jardins do Campo Grande e da Cidade Universitária eram um lamaçal gigantesco, não se via vivalma. Eu estava a caminho de casa dos meus pais, nas Avenidas Novas, a andar muito calmamente, até que passam por mim a correr dois rapazes; o segundo, tu, em perseguição do primeiro, enquanto gritavas, desesperado: “Filho da mãe, devolve-me a carteira, devolve-me a carteira!””, a imitação de Leonor da sua voz arrancou risos aos dois. “Perco-vos de vista, e uns metros mais à frente só chego a tempo de ver o tipo que te roubou a esgueirar-se por uma esquina, enquanto tu te estatelavas monumentalmente numa poça de lama.


«Na altura fiquei com tanta pena que te levei, quase a coxeares, até casa dos meus pais. Coitado do meu pai, ficou lívido quando te viu…. Sabes o que me impressionou mais em ti nesse dia? O que me fez realmente ficar caidinha? Foi a tua confiança. Ali estavas tu, coberto de lama, assaltado, impossibilitado de voltar para casa, e, no entanto, mantinhas esse teu sorriso impassível, e tinhas os olhos brilhantes, cheios de vida…. Foi nesse momento que soube que te amava, que queria este rapaz, a quem um dia de azar dá vontade sorrir, para o resto da vida ao meu lado, porque sabia que se conseguisse tê-lo, mesmo nos dias de tempestade, ia ter raios de sol a despontar no céu. E não é uma clareira na nuca, nem um sinal no nariz, nem sequer a desfiguração mais grotesca que possas imaginar, que vai mudar esse sentimento.”.


Sem dizer palavra, e mais seguro do que alguma estivera ou viria a estar, Alexandre beijou Leonor intensamente, certo de que jamais amara tanto ou fora tão amado.


*


Sorriu, um sorriso nostálgico, com laivos de tristeza e saudade, recordando essa noite. Lá fora, o dia clareara e deixara de chover, apesar de se manter o frio cortante característico daquelas paragens; o mesmo frio que, quando pequeno, enfrentara todas as manhãs em que tinha de ir para a escola no Outono e no Inverno, com um sorriso de desafio no rosto. Antes de sair, foi sentar-se na velha poltrona de veludo que tinha na sala, olhando com solidão para a poltrona ao lado da sua, que estava agora permanentemente vazia, e onde se esforçava por encontrar, todos os dias, antes da sua caminhada, a sua Leonor, ou tapada com uma mantinha, sonolenta à luz da lareira, ou a ler um dos seus muitos livros, agora todos guardados na cave do palacete ou espalhados pelas casas dos filhos. Ao levantar-se e dirigir-se para a porta da rua, não resistiu a olhar de relance para as fotografias posadas no móvel que estava ali desde o tempo dos pais, e que registavam momentos dos Verões dos anos 70 e 80, quando ia para Quintela de férias com a família.


Bons tempos aqueles! Tudo começava no primeiro dia de agosto, com uma viagem que tinha início por volta das seis da manhã, e que se estendia por umas oito ou dez horas, dependendo da quantidade de paragens. Depois seguiam-se quinze dias de uma alegria irrepetível, daquelas que só se tem um punhado de vezes na vida, e nunca mais, com grandes jantaradas de amigos no vasto jardim da casa, com o pôr-do-sol a dar um tom arroxeado ao céu como pano de fundo; grandes caminhadas pelos campos, caminhos, rios, ribeiros e tudo o que se possa imaginar, da região; idas a Lamego, Chaves, Guimarães, e pulinhos a Braga e ao Porto; serões em que ficava na varanda do quarto dos pais - entretanto trancado e entregue ao pó e aos fantasmas por morte dos seus ocupantes -, com vista para o jardim, a tocar numa guitarra para os seus filhos e para a esposa, que o ouvia enquanto estendia a roupa e que de vez em quando gritava um bravo de incentivo; e, claro, a antecipação e planeamento da segunda quinzena de agosto, inevitavelmente passada no Algarve, e para onde os filhos tanto gostavam de ir nadar em água salgada e mar aberto, muito mais espaçoso e quente do que o tanque de rega convertido em piscina de que dispunham em Quintela.


Foram outros tempos, outras idades. Agora descia a velha estrada de lama que atravessava a aldeia como uma artéria, indo em direção ao souto, um dos terrenos propriedade da sua família. Ao todo, seriam uns cinquenta terrenos para cultivo, espalhados por toda a região em redor da aldeia, e cujos rendimentos, em tempos, permitiram uma condição de vida confortável e razoavelmente abastada a Alexandre e aos pais. Mas isso também fora noutros tempos. Agora não eram mais do que pedaços de terra onde as urtigas e as ervas daninhas reinavam. Depois dos pais morrerem, em meados dos anos 90, Alexandre ainda pensara dar uso aos terrenos, construir qualquer coisa, arrendá-los a quem os quisesse trabalhar. Mas todos os planos saíram gorados: rendeiros, nunca apareceram; e quanto a construções, e depois de feitas as contas, Alexandre desistiu da ideia. Apesar de tudo, continuava a ser proprietário de uma quantidade de terra invejável, principalmente pelos padrões nortenhos. Após uns quinze minutos a caminhar, uma dor nas pernas e no peito obrigaram-no a andar mais de vagar, apoiando-se no muro musgado que cercava o souto pelo lado da estrada. O céu estava de uma cor triste, com nuvens cinzentas a formar uma espessa camada sobre a atmosfera, que aqui e ali se desfiava para deixar entrever um azul-ferrete, mais próprio dos dias de Verão que dos de Inverno. Uma brisa húmida atravessava a estrada e os campos, levando consigo o cheiro a terra e erva molhada que impregnava o ar. Ao chegar à entrada do souto, uma cancela de madeira apodrecida que há muito deixara de ter préstimo, Alexandre contemplou o pequeno terreno, relativamente maltratado: na maioria da sua extensão, não era mais do que um amontoado de ervas, terra batida e pedras; no entanto, duas coisas saltavam à vista. A primeira estava ao fundo, do lado esquerdo, de quem entra, um velho barracão, que outrora servira para guardar os equipamentos da lavoura, mas que agora se assemelhava mais a um amontoado de ruínas, com o teto quase todo desabado e as paredes semidestruídas; a segunda estava junto ao riacho que corria perpendicular ao terreno, um moinho de água, milagrosamente intacto e ainda em relativo bom estado. Foi para lá que Alexandre se dirigiu.


Ao adentrar na atmosfera sombria do moinho, recordou-se de uma vez, há muitos anos, em que ali levara Leonor. Era Verão, com um tempo inclementemente quente, e era a primeira vez dela no Norte. Depois de uma manhã inteira a caminhar pela serra, a visitarem os terrenos da família de Alexandre, resolveram parar para descansar no souto. Para se refrescarem, abrigaram-se na sombra do moinho de água. Leonor sentou-se na cadeira que ficava junto à porta, iluminada pela luz que penetrava pela pequena janela quadrangular na parede oposta. Alexandre sentou-se no chão, na penumbra, olhando para ela, para os seus cabelos loiros apanhados num rabo-de-cavalo, para o seu corpo magro e elegante, para as suas pernas longas e bem feitas, de uma pele macia e levemente bronzeada. Passado um longo momento, em que Leonor ficara de olhos fechados, ligeiramente a arfar de cansaço, ele disse, em voz embevecida:


“Eu amo-te”, ela abriu os olhos e começou a sorrir para ele, os verde da iris a brilhar. “Conheci-te na situação mais humilhante possível, coberto de lama e roubado, e tu desde o primeiro momento cuidas-te de mim. Desde o primeiro momento foste incansável no amor que me dedicaste, sem um queixume, sempre disponível. Tem sido assim sempre nestes últimos seis anos. Cada dia que passo contigo, cada carta que trocamos, cada filme que vemos, cada passeio que damos, cada beijo que partilhamos é uma certeza que cresce dentro de mim, a pouco e pouco, de que quero que sejas tu a mãe dos meus filhos, o meu nascer do sol todas as manhãs, a minha lua todas as noites, a minha estrela polar quando me sinto perdido. Nunca conheci ninguém como tu, e sei que não vou conhecer… Acima de tudo, sei que não fores tu, não será mais ninguém. Sei que não te posso perder”. Alexandre levantou-se e, muito lentamente, sempre a fitar Leonor nos olhos, foi até ela e ajoelhou-se, retirando um anel do bolso:


“E é precisamente por não te querer perder que te perder que te pergunto meu amor: queres casar comigo?”.



A recordação da alegria dela nos momentos que se seguiram deu-lhe um aperto de nostalgia no coração. Estava no interior do moinho, agora gelado e solitário, e quase que conseguia ouvi-la a dizer sim novamente, repetidas vezes; quase que conseguia voltar a sentir o seu abraço e os seus beijos de felicidade. Saiu do moinho a sorrir, um sorriso triste, enquanto refazia o itinerário de há tantos anos, de volta a casa. Ao longe, um relâmpago rasgou o céu e fez soar um trovão, sinal seguro de que ia chover. Alexandre sentiu uma fisgada no coração. O respirar tornou-se mais difícil, as pernas tornaram-se chumbo. A visão começou a ficar turva. Quase junto ao portão de madeira apodrecida, tombou. A última coisa que viu antes de apagar foi o velho moinho de água onde a sua vida tinha realmente começado. Quando a chuva começou a cair, já estava morto.

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