top of page
Rita Esteves

Ontem sonhei que estava acordada

Ontem sonhei que estava acordada. Sonhei porque sou humana, achei que estava acordada por mero engenho da minha mente: traiçoeira, gosta ela de me pregar partidas.


Na verdade, não havia muita diferença: o mundo mantinha-se distante e reservado, exatamente como uma criança na presença de um desconhecido. Era rodeada por um ambiente descomplexificado, um tanto quanto descabido, por vezes. E eu notava, sabia que estava a sonhar, mas guardei esse segredo no maior abismo da minha mente, até me esquecer que, verdadeiramente, não estava mais consciente: deixemos a ilusão durar um pouco mais, expandir-se, modificar-se, tornar-se algo bonito talvez.


E bem, bem eu sonhei que estava acordada, bem eu esperei algo de fantástico e inusitado acontecer: queria voar, mas, por sentir que estava acordada, os pés continuaram assentes no chão.


E então ocorreu-me: e se fingisse que estava a sonhar dentro do meu próprio sonho de clareza? E se imaginasse que a minha consciência onírica dormia, quando o meu corpo já repousava há muito tempo? Mas não, permaneci enraizada ao chão, o corpo puxado pela gravidade fictícia: além de infiel, a teimosa não se deixa enganar por si própria. Que massada, não irei voar hoje, talvez noutro dia consiga ganhar asas.


E que mente irrequieta, no entanto insuportavelmente realista: nem a sonhar consigo escapar ao martírio do dia-a-dia. Invejo aqueles que escapam, que têm sonhos cor-de-rosa, que se invadem do comum e previsível, viajam por terras desconhecidas e pouco lógicas, exploram e não se enraízam ao factual enquanto caem nos seus próprios devaneios. Esses, que não são como eu, são felizes, pelo menos enquanto sonham, dentro da sua bolha - uma válvula de escape ao panorama dececionante que é a realidade em que nos inserimos.


Mas enfim, que fazer: não se voa, não se sonha cor-de-rosa, ainda menos a preto e branco. Por vezes um certo delírio decide fazer a sua visita, desestabiliza o outrora sono profundo e calmo, causa ondas na nossa consciência: mas mesmo os pesadelos têm um certo toque e efeito emocionante no espírito de alguém que sonha que está acordado. Mesmo quando acordamos num sobressalto, numa ansiedade de escapar aos medos e inseguranças que criamos inconscientemente, há algo de poético, há algo de empolgante, há algo de novo.


E agora vem a desilusão: esperei, esperei um pouco mais, talvez não tenha esperado de todo - quem sabe como o tempo funciona do outro lado -, e tanta (ou nenhuma) espera, paciência e expectativa, e nada. Nada mudou, nada de extraordinário aconteceu, não se originou algo bonito (como outrora previ): continuei a sonhar que estava acordada, em todos os sentidos pragmáticos da coisa, com todas as cores aborrecidas, sons e cheiros normais do mundo.


Acordei, já não sonhava que estava acordada, estava efetivamente de volta ao universo das coisas palpáveis e concretas. Olhando à distância, fui confrontada com a fadiga do mundo. Que aborrecimento, verdadeiramente não posso fugir de quem sou, e muito menos da realidade que eu própria ajudei a reproduzir.


Ontem sonhei que estava acordada. Hoje, acordada, desejo estar a sonhar.


22 views

Recent Posts

See All

Lápide

Comments


bottom of page