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Sofia Dias

Patente do Amor

“Acho que gosto de me prostituir emocionalmente”, digo ao Afonso. Ele ri-se e encosta a cara à janela da carruagem do metro, enquanto olha para mim. Estamos os dois levemente embriagados por causa de uma festa que a Mafalda e o Rodrigo deram em honra da compra da casa nova. Sim, a Mafalda e o Rodrigo têm dinheiro para comprar casa em Lisboa, impressionante, eu sei.



“Gosto das pessoas muito facilmente. Gosto de colecionar cérebros, apaixono-me rapidamente por eles. Uma amiga minha disse-me que não via ninguém a apaixonar-se pelo dela, mas mal sabe a tonta que eu o tenho guardado numa gavetinha, decorada com brilhantes e estrelas. Para mim, é comum tropeçar num cérebro e querer metê-lo logo numa caixa ao lado do dela.”


O Afonso sorri carinhosamente e diz: “E, eu que pensava que eras uma mulher independente, que não se apegava às pessoas assim e que se focava na carreira e no trabalho! Onde está o teu feminismo?”


O homem que estava no banco ao lado do Afonso sai da carruagem, eu levanto-me e sento-me no banco abandonado por ele. “Ó, sabes muito bem que esse discurso me irrita. Repugna-me a importância que se dá ao indivíduo na nossa cultura atual e em certos tipos de feminismo. Quando falamos que queremos estar numa relação com alguém o que nos dizem é: “Para quê? Estás tão bem sozinha! Aproveita o tempo enquanto ainda és jovem para seres independente!”, como se partíssemos da premissa de que a nossa liberdade é, automaticamente, subtraída por gostarmos de alguém. Acho que a minha vida sem a comunhão com os outros seria menos satisfatória, independentemente da “quantidade” de amor próprio que tenha.”


O Afonso faz uma expressão de contentamento, como se a nossa conversa fosse um jogo de ténis de mesa, em que ele sabe calcular a força com a qual eu lancei a bola, antes sequer de eu a ter lançado. Ele mexe-se no banco e fica mais perto de mim, enquanto uma mulher com uma criança ao colo se senta à nossa frente e o bebé entretém-se, mexendo no pendente do colar que ela tem ao pescoço. A mulher olha para mim e esboça um sorriso. Eu retribuo-lhe a expressão e ela vira-se para o bebé e diz, enquanto lhe toca na cara: “Aquela senhora também tem covinhas como tu!”. O Afonso leva o dedo indicador às minhas bochechas e diz, entusiasticamente: “Pois tem!” Sinto a cara quente e sussurro-lhe ao ouvido o óbvio: “Estás bêbado.” Ele confirma-o e acusa-me do mesmo.


“Sabes, Afonso, acontece-me muitas vezes olhar para um quadro e sentir um sentimento incontrolável de raiva para com o autor da obra. Isto, porque o artista descobriu uma coisa que eu só percebi que estava escondida em mim depois de olhar para a pintura, depois de ele a descobrir primeiro. É, essencialmente, inveja. Inveja de não me ter lembrado daquilo antes, de não o ter pintado antes, aquilo que é uma coisa tão minha, mas também tão dele. Acho que sinto isso relativamente ao Amor também. Sei que não fui eu que inventei o Amor, mas eu sinto-o como se ele fosse meu, como se ele fosse invenção minha, como se eu o tivesse pintado com todas as cores do universo, para depois voltar a cobrir tudo de branco, enquanto deito lágrimas dos olhos, porque é isso que faço sempre.


Ele faz-me uma cara de pena, dirigida, essencialmente, ao que eu disse por último e retorque: “Ser criador do Amor é soberbo! Imagina venderes a patente do amor, ficavas rica!”


“Acho que estou sempre a vender a patente do meu amor, mas desta vez do meu amor com letra minúscula. As vendas é que não correm muito bem, o produto acaba sempre por valer menos do que o preço pelo qual o consumidor está disposto a dar. Claro que, por valer menos não quer dizer que valha pouco.”


Confuso, pergunta-me: “Porque é que achas que o teu amor tem valido menos do que aquilo que estiveram dispostos a pagar por ele?”


“Aquilo que mais me chateou nas minhas relações anteriores foi o facto de os meus parceiros me terem colado a uma imagem de uma personagem secundária que é divertida e cintilante, cujo papel no filme é apenas ajudar o protagonista a encontrar a felicidade. Quase todos amaram a ideia que criaram de mim, muito mais valiosa, e não amaram a Catarina em si.”


Ele acena afirmativamente, mostrando que compreendeu. “Romantizar-te em prol de desejos egoístas, invalidando e ignorando o que queres e o que sonhas é cruel, mas não será impossível amar a Catarina em si? O teu eu primário?”


Finjo que fiquei ofendida, tocando com a mão no peito e dizendo agudamente: “Uau, obrigada pela parte que me toca, não sabia que era uma pessoa impossível de amar!”


O Afonso revira os olhos. “Sabes que não falo nesse sentido. Acho que é impossível amar qualquer pessoa em bruto, nós apaixonamo-nos sempre pela perceção que temos uns dos outros, pela ideia que criamos. Seria errado eu dizer que gosto de ti como a Mafalda gosta de ti. A Mafalda gosta da perceção que tem de ti, que é diferente da minha. Qual destas perceções corresponde ao teu eu primário?”


“Nenhuma”


“Exato. Para mim, a realidade e o amor são contraditórios. Quando amas, amas uma versão distorcida daquilo que é a realidade. É como se cada um de nós tivesse óculos personalizados. Podemos estar a olhar todos para a mesma coisa, mas se trocarmos de lentes com outra pessoa aquilo que vemos é, astronomicamente, diferente.”


O bebé deixou cair o colar que a mãe, anteriormente, tinha retirado do pescoço para ele lhe poder mexer livremente. Eu inclino-me para o apanhar, sentindo que a minha cabeça está presa a um saco com pedregulhos, e devolvo-o. O bebé esboça-me um sorriso, enquanto encosto a cabeça ao ombro do Afonso. Continuo a olhar para a criança, que mexe nas contas do colar, e digo: “Isso até é bonito. Pensar que cada uma das pessoas que gostam de mim tem a sua própria Catarina para amar. Dantes deprimia-me a ideia de ninguém conseguir gostar do meu eu em bruto.”


Ele toca-me no joelho e diz: “Para isso acontecer, era preciso encontrá-lo.”


“Achas que ele anda fugido, Afonso?”, levanto a cabeça do ombro dele, olhando-o nos olhos, como se, ao fazê-lo, conseguisse encontrar a resposta que procuro neles.


“Penso que todos os nossos eus em bruto andam fugidos. Foram comprar cigarros e nunca mais voltaram, nem deixaram rasto para os podermos encontrar. Aquilo que somos anda perdido dentro de nós e, talvez, o desejo mais profundo do ser humano seja descobrir o que não se deixa encontrar.”


Contento-me com a resposta, inclino a cabeça para trás e fecho os olhos e decido que, talvez, vá pôr o cérebro do Afonso numa das minhas caixas.



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