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Oblívio

Pedaços de cartão

Estava vento. Eu tinha-me sentado num banquinho à tua espera, no teu jardim favorito. Combinámos tudo em cima da hora, tu com a tua agenda apertada e eu com o meu calendário cheio, mas de alguma forma - um pequeno milagre, talvez, daqueles que nos passam ao lado na nossa busca incessante pelos grandes - conseguimos estender o tempo para cabermos os dois na pequena infinidade de uma ou duas horas.


Estava vento. Era fim de dia, eu fechei o meu blazer - lembro-me de pensar que nunca o usaria no ano anterior àquele -, e esperei pacientemente por ti. Fiz do livro pesado que trazia na mala - e que também não traria no ano anterior - a minha companhia. Mas a minha cabeça não estava nas palavras que se misturavam nas páginas amareladas do livro.


Quando vivemos em cidades grandes, os pedacinhos de natureza - uma brisa fresca, um grilo a cantar, uma flor a nascer no meio do cimento - podem passar despercebidos. São pedacinhos que estão aqui e ali e não os apanhamos no meio de tudo o que há à volta do aqui e do ali. São pobres sobreviventes da luta contra a teimosia humana, mas nós podemos ser teimosos e parar para os tentar encontrar. Podemos deixar que nos deem um pouquinho de esperança de que a natureza ainda existe, ainda vive, ainda é mais teimosa do que nós. Podemos sentir a brisa e ouvir o grilo e cheirar a flor e decidir que o universo é a coisa mais bonita de sempre, e podemos escrever num pedaço de cartão ADORO-TE UNIVERSO, e podemos não obter resposta mas contentarmo-nos com os pequenos milagres que ele nos dá quando sentimos a brisa e ouvimos o grilo e cheiramos a flor. A minha cabeça não estava nas páginas do livro porque estava nas árvores, e no lago, e no céu alaranjado. Eu estava a contentar-me com os pequenos milagres em vez de me focar nas páginas amareladas do meu livro. Não querendo minimizar as pobres palavras – eu amo as palavras, exceto quando as odeio –, as palavras estão em todo o lado; mas os milagres da natureza estão só aqui e ali e às vezes as palavras não chegam, apesar de estarem em todo o lado, porque os milagres não estão em quase lado nenhum e às vezes os opostos não funcionam assim tão bem juntos, e às vezes há coisas que nem sequer as palavras conseguem explicar, e às vezes eu odeio-as.


Estava vento. Não demoraste a chegar. Vinhas, como habitual, de mochila às costas e mãos nos bolsos, com a maior tranquilidade do mundo. Costumavas dizer que eu andava pela vida com tudo controlado, mas naquele momento, enquanto caminhavas calmamente na minha direção, achei que o controlo estava todo do teu lado. De repente viver parecia tão fácil como caminhar entre as árvores do jardim. Outro pequeno milagre. Disseste qualquer coisa engraçada sobre a minha roupa - afinal, eu não a usaria no ano anterior, e tu, claro, sabias disso - e comentaste o título do meu livro. Estavas sempre a dizer que eu devia ter escolhido matemática mas o orgulho nos teus olhos contrariava as tuas palavras. Eu sabia, e tu sabias que eu sabia, que adoravas ouvir-me falar sobre Direito e sobre a forma como eu pegaria nele e mudaria o mundo. Esse teu orgulho sempre me ajudou a tornar certas as minhas incertezas, e se isso não é um milagre, então não sei o que mais será.


Nunca me vai ser possível explicar aquilo que a fé inabalável que algumas pessoas têm em mim me faz sentir. Não estou a falar da idealização injustificada, nem da admiração por muito genuína que seja, nem das expectativas que nos pressionam – tudo isso pode ser mais prejudicial do que benéfico. Estou a falar da fé pura da pessoa que vê dentro de mim uma bolinha de luz. Escolhas à parte, fases à parte, erros à parte, a pessoa vê a minha estrelinha e sabe que eu ficarei bem porque a estrelinha está lá para me mostrar o caminho. E como me é impossível ver a minha própria bolinha de luz, eu só sei que ela está lá porque a pessoa que tem uma fé inabalável e pura em mim vê a bolinha de luz e eu vejo no reflexo dos olhos dela a bolinha de luz. E então eu sei que tenho a minha estrelinha. E então eu sei que vou ficar bem. E mesmo assim, esta é uma explicação terrível para a sensação. É que essa fé torna o incerto todo certo e o escuro todo luminoso e é definitivamente um milagre gigantesco. Por isso eu tento que algumas pessoas também saibam que eu vejo nelas as suas estrelinhas, que eu tenho nelas essa fé inabalável. E vou por aí – vamos todos por aí – a mostrar às pessoas as bolinhas de luz que vemos, e tornamo-nos distribuidores de milagres, todos nós. Que incrível.


Estava vento. Falaste-me de coisas que eu não percebia mas gostava de te ouvir a explicar-me. Era das minhas coisas preferidas, aprender coisas contigo. Achava fascinante a forma como demoravas um bocadinho a encontrar as palavras certas para explicar - conseguia quase ver as engrenagens do teu cérebro a funcionar - e como mexias as mãos sempre da mesma maneira enquanto falavas. Agora quem não consegue explicar alguma coisa sem mexer as mãos sempre da mesma maneira sou eu. Suponho que seja algo normal – somos só partes das pessoas que passaram por nós – mas isso é sem dúvida alguma uma coisa normal milagrosa. Que milagre sermos construções de lego coloridas e confusas, sem forma definida, e irmos ganhando e perdendo peças uns dos outros. Que milagre uma das minhas peças (talvez várias das minhas peças) ser tua. Agora não sei se é nossa ou só minha porque não sei se ainda mexes as mãos a falar. Não sei de que cor está a tua construção ou que forma tem. Mas sei que parte do meu lego – parte do meu milagre – ainda és tu.


Penso muitas vezes em como seria mais fácil se eu tivesse vindo com instruções para o meu lego. Saberia o que montar, onde montar, como montar; seguir as regras, e mais nada. Como não vim com instruções, como não há regras, o meu lego altera-se constantemente – torna-se quase cansativo. Às vezes pareço uma casa, outras vezes uma faca das que se usam para cortar a melancia, outras vezes um balão de ar quente. Fica difícil imaginar qual seria a imagem da caixa do lego, aquilo que a minha construção deveria ser. Apetece escrever num pedaço de cartão O QUE É QUE É SUPOSTO EU SER, UNIVERSO? Apetece perguntar se as outras pessoas têm livros de instruções e eu é que sou o lego com defeito. Porque é que toda a gente parece saber exatamente qual a forma que é suposto ter no fim?


Eu não percebo nada de formas. A única coisa que eu sei é que tenho em mim as peças de todas as pessoas que me construíram - ou desconstruíram – e se calhar isso significa que não preciso de instruções. Porque para que servem os legos, senão para improvisar, montar e desmontar, experimentar, construir e destruir e voltar a construir com peças diferentes? Para que servimos nós, senão para mudarmos, evoluirmos, decairmos e levantarmos, engrandecermos, empequenecermos, e ficarmos deitados até nos apetecer pormo-nos em pé para caminharmos ao lado de alguém?


Estava vento. Houve vários silêncios nesse dia. Mas os silêncios contigo nunca eram desconfortáveis - ensinaste-me a gostar deles. Agora nas conversas de café apetece-me gritar aos ouvidos das pessoas que estar em silêncio também é bom, que há muito que é dito sem falar. Todos somos demasiado lentos a ouvir. Somos demasiado rápidos a querer preencher silêncios que existiriam pacificamente se não fizéssemos nada em relação a eles. Somos demasiado rápidos a sabotar a nossa paz. Mas tu nunca foste rápido a criar caos. Sempre viveste bem no silêncio. Talvez esse seja o teu pequeno milagre.


Estava vento. Foram duas horas muito normais, em nada milagrosas, e ainda assim, os pormenores estão em gavetinhas na minha cabeça que se abrem sempre que oiço aquela música na rádio. Sim, a música passou na rádio e eu escrevi isto. Sim, a música passa na rádio e eu fico triste. Sim, às vezes odeio a música. A música passa na rádio e eu lembro-me do vento e do jardim e da matemática e dos legos e das tuas mãos nos bolsos e do silêncio e dos teus olhos orgulhosos e só me quero deslembrar. Quero tanto deslembrar-me e lembro-me tanto que a certo ponto já não distingo aquilo que aconteceu daquilo que eu penso que aconteceu: será que os meus gestos das mãos vieram de ti? Que coisa era aquela que me explicaste naquele dia? Há quanto tempo é que estivemos juntos, mesmo?


Enfim, de certeza que o meu calendário estava cheio – está sempre. De certeza que te vi a caminhar entre as árvores (se fechar os olhos ainda vejo) e de certeza que as duas horas passaram depressa demais. De certeza que foi tudo um pequeno milagre. De certeza que tu és um pequeno milagre. De certeza que eu sempre procurei pelos milagres grandes – de certeza que isso é uma tragédia. Só apetece escrever num pedaço de cartão FAZ-ME VER OS MILAGRES PEQUENOS, UNIVERSO, e talvez seja este o momento certo para perceber que, na verdade, o Universo nunca esteve realmente a ouvir.



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