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Tiago Monni

Porque não continuamos a brincar?

Às vezes, em lapsos do meu cotidiano, recorro à nostalgia do despertar de uma criança, que não sabia o que era o mundo, e que tinha como dever explorá-lo e descobrir todos os seus labirintos e entranhas. Hoje em dia, por outro lado, sou um especialista no Mundo, pois provavelmente conseguiria desenhar um mapa que incluísse todos os seus caminhos e esconderijos, sendo tudo já previsível e esperado. Portanto a minha única arma para viver é a nostalgia: quem dera se alguém apagasse a minha memória e o passado tornasse presente…

Da mesma maneira que muitas crianças, eu costumava montar os meus próprios brinquedos, consternado, “vidrado” naquela ação. Poderia estar a acontecer um incêndio na cozinha, causado pelo meu irmão desastrado ou um anúncio de que a família fosse fazer uma grande viagem, que eu ainda estaria incessantemente à procura daquela maldita peça pendente para que eu pudesse completar a construção de uma das dez torres que tinha pelo caminho.

Passava horas nesta atividade, “movido” por qualquer coisa que eu não sabia identificar. Apesar da indicação do resultado do brinquedo, evidenciada na própria caixa, e da existência de um passo a passo pormenorizado que indubitavelmente me levasse a tal resultado, tomava como meu dever terminar a construção que eu próprio comecei, do meu próprio jeito. Em reflexão, descobri que o que me movia era um verdadeiro Mistério, uma exigência de totalidade sobre qual, mesmo com a minha tenra idade, conseguia intuir ser infinitamente mais forte e mais potente do que o previsível manual de instruções que me apontava à construção da imagem pré formatada presente na caixa.

Terminada a construção, corria diretamente ao quarto dos meus pais. Eles sorriam; e assim os meus olhos brilhavam, ao saber que fiz algo de importante. Naquele momento, através da realização da tarefa a qual me designei, me sentia pertencido, feliz. Reconhecia que nenhum manual de instrução, por mais detalhado que fosse, conseguia instruir-me até a beleza consubstanciada naquele momento.


Cinco minutos depois de ter saído do quarto deles, eu volto e peço por mais um brinquedo. Por mais bela que aquela aventura tenha sido, não me encontrava satisfeito. Eles coçam a carteira, fazem contas e decidem o dia da compra. Como o dia D nunca chegava, ficava eu na fila de espera, louco para que fosse a vez da minha senha.

Atualmente, tenho 20 anos e cerca de 30 brinquedos na minha coleção. Eles ficam ali, hermetizados no armário, envoltos de poeira. Agora já não brinco, já não crio. Resta-me viver afundado em uma maré de obviedades, ditas e repetidas pelos meus colegas. Nós já jogamos todos os jogos, já brincamos até mais do que deveríamos. Tornamo-nos os criadores dos manuais de instruções. O Mistério que buscávamos nos brinquedos já foi desvendado, pois agora somos donos do nosso próprio destino. O que resta é a reputação de já ter feito de tudo e o alívio de finalmente não ter nada mais por fazer.

Qualquer imprevisto, surpresa, trabalho a ser resolvido ou convite inesperado é uma mosca a zumbir no nosso ouvido: matamos logo. São completamente artificiais, pois não teriam sido fruto da nossa infrutífera criação. Em cima do estandarte da nossa arrogante autossuficiência, escolhemos deliberadamente censurar o novo em prol de um reconfortante bem-estar, em que tudo é óbvio. Agora, afinal, o novo não existe.

Passam-se meses e nem me apercebo do devir das coisas, pois tudo continua igual, “bem”, “tranquilo”, “normal”. De alguma forma, criamos a nossa própria linha do tempo. Até que chega o derradeiro ponto em que me sinto sozinho, mesmo quando rodeado por dezenas de amigos. Sinto-me fraco, pois parece que já não consigo possuir a realidade com as minhas próprias mãos. O ambiente de condescendência entre os meus amigos torna-se intimidante.


Passados alguns dias, constatei que este nosso “tudo” não era suficiente. Volta a insatisfação, aquela que sempre me deixava inquieto enquanto criança. Já não escolho violentamente anulá-la, mas entendê-la, refletir sobre ela. Noto que a nossa autossuficiência afinal tinha prazo de validade, pois não me basto sozinho e nem quando estou com os meus amigos.

Simultaneamente a esta insatisfação está uma nostalgia profunda, que procura distrair a minha memória em busca daquela época pueril, quando, para aprender a andar, eu não tinha medo de cair no chão; e mesmo assim chorava ao ralar o joelho. Chorava porque sentia na pele o impacto da vida. De uma vida “vivida”, não de uma suposta artificialidade fabricada.

Sinto saudade da criança que queria construir brinquedos cada vez maiores e que ainda ficaria insatisfeita mesmo após ter finalizado o maior que já lhe foi dado. Apercebi-me que, por mais poderoso que fosse, não conseguiria saciar a sede infinita do coração com as minhas próprias obras. Preciso de algo diferente que não dependa e que não consiga ser medido por mim, porque sei que se fosse tentar resumir a potência da vida em um manual de instruções, não haveria papel suficiente.

Necessito precisamente de recuperar aquele segundo antes de abrir a porta do quarto dos meus pais. Ali tudo era um imprevisto, tinha, inclusive, um pouco de medo de que eles ficassem indiferentes quanto aquilo que lhes iria apresentar. Não obstante, após uma certa hesitação, sempre decidia por, em um ato de coragem, abrir a porta e entregar-me a algo que não dependesse de mim, mas sim da obra de um outro. Assim, em uma curta reminiscência, descobri que a entrega é infinitamente mais bela do que a posse!

Hoje cheguei a casa após um intenso dia na faculdade, passado junto com os meus amigos. Decido abrir o compartimento mais recôndito do meu armário e acabo por despedaçar-me a chorar. Contudo, a meio deste mar de lágrimas consigo afirmar, com uma voz trêmula: aos 20 anos, recuso-me de já ter construído o meu último brinquedo.

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