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António Subtil

Pouca terra, pouca terra - Um caso prático do dilema do comboio

O dilema do comboio é provavelmente o dilema da filosofia mais conhecido de sempre, portanto perdoem-me o cliché, mas quero chegar a uma estação.


Neste cenário, um comboio a alta velocidade está prestes a atropelar cinco pessoas presas aos carris, mas, tendo à nossa frente uma alavanca que os controla, podemos redirecionar o comboio para uma linha alternativa na qual só se encontra presa uma pessoa. Só podendo escolher entre deixar cinco pessoas morrer ou matar uma pessoa, o que fazer? A resposta mais popular é a matar em vez de deixar morrer, porque intuitivamente, a maior parte das pessoas coloca mais valor na vida de vários do que um. Esta suposição não deve mudar de acordo com a escala: matar dez para salvar cinquenta, cem para quinhentos, etc.: o princípio é o mesmo.


A segunda variante do dilema descarta a alavanca e dá-nos um gordo. Podemos impedir que o comboio atropele cinco pessoas se empurrarmos para a linha um homem tão mitologicamente obeso que a sua massa consegue por si só parar um comboio em movimento. Continuamos a ter a decisão de sacrificar uma pessoa para salvar cinco, mas esta torna-se geralmente uma decisão mais controversa, pelo ato de empurrar o homem ser mais violento e direto que a decisão relativamente indireta de puxar uma alavanca. As consequências são as mesmas: num cenário onde estas são as duas decisões possíveis, escolher não matar um é matar cinco. A diferença entre o homem e a alavanca é estética e não releva à moralidade.


Releva à lei, claro. Fazer do homem um meio é das violações legais mais basilares, mas falamos aqui de moralidade, não direito. 


Suponhamos agora que estes acidentes são regulares, e centenas morrem por ano. Sabemos que isto acontece porque o gestor dos caminhos de ferro os gere mal, e sabemos que qualquer gestão que se siga irá impedir estes acidentes. O mesmo princípio aplica-se, se estas forem as únicas escolhas. No mundo real, claro, existem mais escolhas: podemos levar o gestor à justiça, ou pelo menos aos tribunais. Mas mesmo, assumindo uma justiça eficiente, ainda demora tempo, e a cada dia, alguém é atropelado. Isto assumindo que o caso é mais que claro, que as ações do gestor são evidentemente ilegais.


Mas e se a forma de gerir não for ilegal? Voltamos ao dilema, assumindo só entre matar e deixar morrer. Mas talvez o gestor possa apenas ser coagido a deixar o cargo, e aí salva-se sem matar sequer. Coação, fui informado, continua a ser crime, mas se diretamente levar ao salvamento de vidas, então esta mutação do dilema coloca-nos a escolha entre um ato ilegal mas moral, e permitir um ato legal mas imoral. 


O dilema do comboio é nos cada vez mais útil quantas mais carruagens acrescentarmos, andando cada vez mais como anda na nossa terra. Há um sem-fim de carruagens, rodas e vapores a carvão, linhas múltiplas que se entrecruzam entortadas, e demasiados que morrem. Há também avalanches de alavancas. Eis o que sabemos sobre a grande máquina, e isto é claro e científico: sabemos que milhões vão morrer, e milhões vão ficar sem nada, numa escala ultrapassada por todos os genocídios. Sabemos o que se pode fazer para o evitar: as alavancas têm de ser travadas, e isso é possível de alcançar por meio da política pública, da lei. Sabemos que o comboio continua a avançar e não está a abrandar o suficiente: a cada segundo que passa, alguém é atropelado e escolhemos que se seja atropelado. Só podemos questionar quantos vão morrer antes de finalmente parar. Sabemos que não está a parar. 


Não sabemos como alcançar as alavancas. Fazer os agentes que podem, agir. 


E talvez não haja uma resposta concreta, talvez a resposta seja disparar em todas as situações e ver onde se acerta. Que se atire tinta, que se vote, que se proteste, e boicote e se promova, escreva-se e discuta-se, que se sabote, subsidie e sancione. Se sacrifique. A solução climática tem necessariamente de ser global e eclética, entre o moral e o imoral, o legal e ilegal, mas sempre vivaz, porque é sempre desesperada. 


É uma guerra que se está a perder, mas é preciso tentar fazer-se justiça, dentro dos tribunais e fora deles. 


Ou caem os céus, canibalizados por comboios.

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