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Writer's pictureJurpontonal Nova Law Lisboa

Simone

O traço intermitente numa página em branco sempre desconcertou Simone. Era uma marca acusatória – da falta de fluidez das suas ideas, da falta das ideias em si, do adiar de um trabalho que parecia, agora, avançar aos soluços. Na maior parte dos casos, a solução era linear, apesar de demorar o seu tempo a ser aceite e prosseguida: abrir a torneira e deixar correr sem controlo a água suja, até ver aparecer água limpa; querendo com isto dizer, escrever de forma persistente sem atentar cuidadosamente ao conteúdo textual, à construção frásica, à conjugação entre os vários componentes do texto. Simplificando, escrever pelo ato de escrever, quase como pegar num pincel, mergulhá-lo profundamente numa lata de tinta, e passá-lo indiscriminadamente pela tela. No entanto, a verdadeira tormenta de Simone provém do facto de há várias semanas, quiçá meses, se encontrar presa neste exercício de abertura e fecho da sua torneira literária, em que, mesmo após purificar a primeira água que saíra, parecia-lhe que esta permanecia contaminada. Não lhe agradava a forma como combinava as palavras, a dificuldade que experienciava ao tentar descrever um sentimento, um objeto, uma pessoa sem ir parar a um lugar comum, sentia que o que criava através da sua escrita não era verdadeiramente novo, único, especial. De modo a que, no momento presente, a estratégia adotada é permanecer imóvel diante do ecrã do seu portátil, com o insistente traço a não se mover um único milímetro para a frente. É uma representação visual do silêncio.


No dia de hoje Simone levantou-se cedo. Tomou o pequeno-almoço, enquanto assistia ao telejornal da manhã. A seguir, sentou-se diante da secretária, colocada estrategicamente por baixo da janela quadrada, para a primeira batalha do dia travada entre si, o traço intermitente, e a página em branco ou parcialmente escrita. O arranque era, na maior parte das vezes, o que mais custava – pensava demasiado nas palavras que iria utilizar, e, enquanto esse pensamento vinha e não vinha, dava por si a observar atentamente as suas mãos e as suas unhas, ou a distrair-se com uma pessoa que, lá fora, atravessava a rua apressadamente, ou com um avião em rota descendente rumo à pista de aterragem, ou com o cortinado que emoldurava a própria janela, discutindo mentalmente se havia escolhido a cor certa. Estas distrações não tinham um tempo determinado, só sabia que a dada altura começava a cuspir letras que formariam palavras que formariam frases para a sua página, encontrando um certo ritmo naquela abordagem inicial.


Eventualmente fez uma pausa para arejar a cabeça. Olhou, mais uma vez, para o exterior e viu que o dia convidava a um passeio até a um parque ali perto. Tinha por hábito, nessas caminhadas, transportar consigo um livro. Quando sentia o cansaço tomá-la, sentava-se num banco de jardim, rodeada por árvores, e mergulhava num universo paralelo, longínquo do seu. O livro é um objeto de estudo, de inspiração, e, ao mesmo tempo, um lembrete do trabalho pendente que deixara em casa. Era frequente questionar-se se os grandes nomes da literatura também experienciavam aquela sensação de impotência e constante insatisfação que agora ela atravessava. Parecia-lhe, no mínimo, bizarro conceptualizar, Elena Ferrante, a sua heroína literária (ou herói literário?) a debater-se com o “e a seguir?” a dar à sua história. Simone regressou a casa. Tinha a esperança de que o seu subconsciente absorvera, naquela incursão pelo mundo exterior e pelo mundo fictício, algumas peças que a ajudariam a completar o puzzle com que se depararia, mais uma vez, ao sentar-se à secretária. A verdade é que as questões existenciais da escritora que vimos acompanhando se prendem grandemente com um salto em direção ao abismo que esta decidiu realizar. Simone tem por hábito escrever histórias curtas, contos, crónicas, textos opinativos aqui e ali. Porém, propôs-se a empreender a nobre e árdua tarefa de escrever um livro. A sua primeira publicação com uma capa, contracapa e lombada, com páginas em que poderia tocar, agarrar, escrever, sublinhar. Seria algo mais do que simplesmente letras num ecrã de computador.


De volta ao lugar de onde partira, Simone tenta chegar à raiz do problema. O desejo de escrever um livro, mais precisamente uma ficção, não era recente. Vivia dentro de si há quase tanto tempo quanto aquele em que entendia o conceito de sonho. Surpreendentemente, o enredo do seu livro veio-lhe à ideia de forma antagónica ao que agora experiencia: foi numa terça-feira à tarde enquanto aspirava a carpete, surgindo-lhe como uma sucessão de cenas de um filme hollywoodesco. Teve de desligar o aspirador de imediato e pegar no papel e caneta mais próximos, com receio de que se não escrevesse aquela ideia nunca mais a conseguiria formular da mesma forma, ou que qualquer outra que surgisse de seguida não teria sequer comparação. Foi o seu momento “BINGO!”. É no momento da execução, aquele em que presentemente nos encontramos, que Simone se sente a caminhar no deserto enquanto tenta transportar para o papel as imagens que o seu cérebro lhe fornece. Sente, além disso, a pressão, por ser a sua estreia, e de a isso ter associado a necessidade de que a sua criação seja algo que a satisfaça a si e que surpreenda quem a lê. Não há uma segunda oportunidade para causar uma primeira boa impressão. Simone quer mostrar a sua voz, que agora parece estar sumida, e que é merecedora de um lugar nas estantes dos leitores. Será o seu trabalho relevante, impactante? Vem acrescentar, ou a sua obra será só mais uma para o molho dos livros que estão anos e anos na pilha do “a ler no futuro”? Materializar a sua história é como apresentar-se a quem a lê e dizer “isto é a Simone. Sintam-se à vontade para determinar o meu valor em função da forma como descrevo esta bela casa”. A sensação é a de estar a dar cartão branco às pessoas para estas fazerem um visita guiada à sua imaginação. E por mais positivo que tal seja, por poder partilhar com o resto do mundo, isto é, com quem queira lê-la, algo que saíra de si, da sua cabeça; existe depois o reverso da moeda, sentindo-se assoberbada com o facto de estar a expor a sua maneira de pensar, e de estruturar pensamentos a quem a queira julgar e avaliar a própria qualidade desses pensamentos. E se for, no fim de contas, uma fraude? Para ela, uma coisa são as caixas de comentários dos seus artigos quando decide escrever sobre tópicos mais “sensíveis” como as consequências irreversíveis que o patriarcado tem na sociedade e em cada um de nós enquanto indivíduos que dela fazem parte, ou sobre mais um escândalo nas mais altas instâncias do Estado. Para esses já havia desenvolvido uma capa de imunidade. Um livro, por outro lado, trazia uma carga distinta. Teme que caso não se sinta realizada com o produto final, nunca mais conseguirá olhar para si enquanto escritora da mesma forma, que iria passar uma vida a duvidar de si. Todavia, muito pior que isso é constatar que se deixara amedrontar por suposições da sua cabeça e desaproveitara uma hipótese soberana para concretizar um sonho.


No meio de todas estas hesitações, o traço ainda não saiu do local onde Simone o deixara antes da sua pausa para passeio. Talvez ainda não seja hoje que ela encontra a chave que abrirá o portão da sua inspiração. Não custará tentar amanhã, e depois, e no dia seguinte, e no dia seguinte a esse, até ao dia em que entrar numa livraria, saber exatamente a que corredor se dirigir, e passar a mão pela capa de um exemplar, onde ao meio lerá o seu nome.


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