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Sofia Dias

sonhos de elefante

Limpo as lágrimas com a mão esquerda, dígito o número de telemóvel com a direita e ando em passos largos pelo passeio. Tenho o rímel borrado por causa do choro e a franja despenteada. As palavras do Afonso parecem vir com o vento, como ecos: “Catarina, vou ser sincero. Não acho nada de especial, sinto que já vi isto em algum lado. Parece que as tuas pinturas não estão vivas e que as enterraste antes sequer de lhes teres dado vida.”


Se os meus quadros tivessem sido pintados a partir de um ponto de vista “típico” masculino, marcados por um heroísmo entediante, por uma vitimização desmedida e por um aborrecimento mascarado de tristeza, então, o Afonso amá-los-ia. Que tolo, ele não passa de um homem tolo! Que sabe ele sobre a minha arte? Que sabe ele sobre mim? Só sabe aquilo que eu deixei que ele soubesse, o que corresponde a absolutamente nada, sou tão camaleónica como uma bola de espelhos. A minha relação com o Afonso resumia-se a isto - ele punha sal nas minhas feridas, enquanto me dava beijos na bochecha.


Encosto o telemóvel à cara molhada e ouço uma voz enfurecida: “Onde estás? Estás atrasada! O jantar está a arrefecer! Catarina? Catarina, querida, estás a chorar? Passou-se alguma coisa? Está tudo bem?”


Suspiro e começo: “Acho que não está tudo bem, mãe. Às vezes, sinto que o meu cérebro não acompanha a velocidade do meu coração. Como se estivessem os dois a jogar à apanhada e o meu coração fosse tão veloz como o Aquiles e ninguém o conseguisse apanhar.


Hoje, alguém por quem tenho carinho disse-me que não gostava dos meus quadros. Eu não sei ser sem os quadros que pinto, mãe. O que quero é que todos me digam “Catarina, querida, está tão bonito. És tão bonita. Amo-te”, tal como tu dizias quando eu te desenhava com braços e pernas palito. Mãe, eu adoro-te, mas a culpa talvez seja tua por me habituares sempre à tua devota aprovação. E, agora, quando não a recebo dos outros, apetece-me rasgar-me, colar os pedacinhos de outra forma e fazer um puzzle novo.


Antes, a Mafalda ajudava-me sempre a fazer o puzzle no chão da sala. Ela insistia em pôr juntas peças que, notoriamente, não encaixavam, mas, de alguma forma, a imagem final ficava muito mais bonita do que a de referência que vinha com a caixa do jogo. Agora, não partilho com ela qualquer responsabilidade artística. E, caramba, ela acabou de comprar um casarão e aposto que está grávida, porque não bebeu uma gota de vinho no último jantar que tive com ela e eu sei que ela adora vinho. Mãe, a Mafalda que eu conhecia odiava crianças, sabias? A Mafalda que eu conhecia queria viajar pelo mundo, enquanto me dava permissão para ser minha musa, por um prazo indefinido.


Eu acho que ela sempre adorou o estrelato que os meus quadros lhe davam, orgulhava-se de ser o epicentro de quase todos os meus terramotos artísticos. Quando chegava à altura da inauguração da exposição do meu trabalho de fim de semestre na faculdade, a Mafalda era o centro da sala. Todos os olhos se viravam para a rapariga com roupa eclética e com um sorriso maior do que o mundo. Ela fingia não gostar da atenção e, então, como por caridade, pegava-me no braço e forçava-me a falar com as pessoas sobre as pinturas. É certo que as conversas eram, geralmente, controladas por ela, mas eu deixava, deixava-a controlar tudo. Funcionávamos assim e não havia nada de mal nisso, eu estava feliz com o que pintava e ela juntava “ser musa de uma semi-artista” ao lado de “ter uma cara de boneca” à lista de coisas que faziam dela uma mulher fatalmente atraente, não dando hipóteses a qualquer pessoa que se recusasse a apaixonar-se por ela.


Lembro-me de ela me dizer, enquanto pintava as unhas dos pés com uma mão e mudava de canal com a outra, com o rosto iluminado pela luz da televisão: “Catarina, vamos para a Tailândia, vais pintar-me enquanto eu estou agarrada a um elefante e te sorrio com os dentes todos!”


Eu sabia que não havia dinheiro para irmos à Tailândia, nem para viajarmos pelo mundo, a Mafalda estudava teatro e eu estudava pintura, não estudávamos uma engenharia qualquer, que nos desse um bom ordenado. A Mafalda sabia disso, a Mafalda sabia que nós nunca iriamos à Tailândia sozinhas e que eu nunca a pintaria agarrada a um elefante, enquanto ela me dizia, aleatoriamente, que cores utilizar para a pintar a ela ou ao animal e me sorria com os dentes todos. A questão é que, para ela, o sonho bastava e para mim também. A Mafalda tinha consciência de que só a proposta de tal ideia me faria feliz, ela sabia que eu adorava sonhar acompanhada, aliás, que eu vivia para ser arquiteta de sonhos, independentemente deles se transformarem numa coisa concreta ou não passarem de bolinhas de sabão que pairavam aqui e alí.


Agora, eu e a Mafalda deixámos de fazer isso. Deixámos de partilhar sonhos. Ela faz o que todos os outros adultos fazem, fingir. A maior parte de vocês brinca ao jogo da vida a fingir. Vivem em casas a fingir, com pessoas a fingir, fazem sexo com o vizinho a fingir, têm um emprego a fingir…


Sabes o que está presente em todos os meus quadros, mãe? Sede pela vida. Eu pinto para que os outros gostem de mim, acho que tudo o que fazemos é uma forma de nos amarem um bocadinho mais, mas também o faço para provar a vida vezes sem conta, como se ela fosse um fruto infinito. No final de contas, as duas coisas podem coexistir.


Pintar é saborear a vida de diferentes formas, das formas que eu conseguir sonhar, até não der mais, até o meu cérebro, finalmente, conseguir apanhar o meu coração e lhe dizer, com uma voz autoritária: Acabou. Para de andar em círculos. Já foste todas as Catarinas que quiseste ser. Já colheste todos os figos e já os comeste todos. Para de pintar telas e a seguir de as cobrir de branco. Começa a usar outros sapatos mais confortáveis que não aquelas botas horrorosas que a Mafalda te deu nos anos. Vai descansar, leva os teus sonhos até ao fundo da piscina de alguém e enterra-os lá, entrega-os a outras pessoas, como se fossem presentes. Continua a decorar as caixas dos teus cérebros (que são tão teus como das pessoas às quais os roubaste), trata bem deles. Mas, vá lá, Catarina, está na hora. Vai fingir como os outros fingem.”


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