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Sofia Dias

Tela em branco


Ouve-se o tilintar dos talheres e o burburinho de conversas secretas. O jantar está quase no fim e eu levo o copo à boca e bebo o vinho. Não percebo nada de vinhos, o que provei é doce e isso chega-me.


O namorado da Mafalda e o Afonso, amigo do Rodrigo e meu suposto pretendente, estão a falar de comunismo há uns bons minutos. “Acho estúpido, nesse mundo, eu ganhar o mesmo que uma empregada de limpeza!”, diz o Afonso, mexendo as mãos, energeticamente, como se estivesse numa palestra. O Rodrigo concorda com ele e diz: “Cuidado, não vás dizer isso publicamente, ainda és chamado de classista.” Eu acabo o que tenho no prato e tranco os talheres. O Afonso ri-se do que o Rodrigo disse e exclama: “Vivemos numa sociedade de “ofendidinhos”! Já não posso dizer a minha opinião sem ser chamado de algum adjetivo que tenha um sentido pejorativo!”


Antes que a conversa se aprofundasse pelo tema da liberdade de expressão, decidi intervir. “Bem, se vivesses numa sociedade comunista não ias ganhar, necessariamente, o mesmo que uma empregada de limpeza. Se não existe dinheiro, não há salário para ganhar. Não há grande sentido no que estão a dizer.” Normalmente, penso que ficar calada e fazer uma cara de desaprovação, sem argumentar me faz parecer mais inteligente e misteriosa. Assim, consigo transmitir a minha desaprovação, mas isolo-me do criticismo que essa desaprovação poderá causar, porque não a explico. Hoje, já tinha bebido a minha porção de vinho e sentia-me corajosa.


O Afonso ri-se do que eu digo, espeta o peito para a frente e responde-me: “Não sei o que andaste a ler, mas comunismo significa igualdade, logo, eu ganharia monetariamente o mesmo que toda a gente.” Antes de poder dizer que se o Afonso soubesse o que eu andei a ler, talvez não estivesse a dizer disparates, a Mafalda interrompe-me: “O assunto está a ficar pesado, não? E que tal mudarmos o rumo da conversa.” Ela faz-me um olhar sugestivo, que se podia traduzir em: “Organizei este jantar para encontrares um rapaz que possa gostar de ti, mas aparentemente não gostas de nenhum. É suposto dares gargalhadas quando ele diz piadas, concordares com as posições políticas dele e se discordares, tens que fazê-lo de forma suave, não evasiva, porque se não vais parecer uma cabra. E se continuares com isto, é isso que vais parecer.” Calo-me e molho os lábios no vinho. Não queria acabar de beber o que tinha no copo, porque assim já não tinha um gesto para preencher momentos constrangedores.


A mesa fica, momentaneamente, calada. O Rodrigo serve mais vinho à namorada e o Afonso olha para o relógio, fingindo que está a ver as horas. A Mafalda decide acabar com o silêncio desconfortável: “Afonso, sabias que a Catarina trabalha numa galeria?” Ele para de olhar para o relógio e em vez disso olha para mim, levando as mãos à barba. “A sério? O que fazes lá?”


Sento-me mais direita e começo a bater com o pé no chão. “Faço visitas guiadas.” Ele boceja e diz: “Ah, estou a ver. Não pintas, não?” Antes de poder abrir a boca para falar, a Mafalda decide falar por mim: “Pinta, sim! Tem muito jeito!”


Na faculdade, eu e a Mafalda vivíamos juntas e ela costumava dar-me ideias para quadros, porque eu odiava todas as que tinha. No fundo, sabia que era apenas uma maneira de não ser vulnerável em relação ao que pintava. Transferir a responsabilidade criativa do que fazia para outra pessoa, para que, no caso de criticarem o meu trabalho, eu poder ter mais alguém para culpar sem ser eu e me sentir melhor comigo mesma. Um dia, ela sugeriu que fizesse um quadro só com as cores da roupa que ela tinha trazido naquele dia. Foi o quadro mais colorido que já pintei e ela colocou-o no quarto dela. Chamámos-lhe: “O que é que diz a tua alma? A da Mafalda diz isto”. Todos os amigos que nos visitavam iam pelo título mais curto: “Cores da alma da Mafalda”. A pintura era o centro da festa e originava conversas interessantes quando todos estavam demasiado embriagados. Agora, a Mafalda tem mais com o que se preocupar, nomeadamente, a yoga de sábado. De momento, tudo o que faço, contra a minha vontade, vem tudo da minha cabeça e, logicamente, deixa-me numa pilha de nervos.


“Algum quadro teu já foi exposto?”, pergunta o Rodrigo, interrompendo os meus pensamentos. “Infelizmente, não. A Catarina é muito tímida em relação àquilo que faz. Não se importa de mostrar aos amigos mais próximos, mas mostrar ao resto do mundo é, definitivamente, uma linha vermelha.” A Mafalda responde, novamente, por mim, dando-me um encontro no ombro. O Afonso faz uma cara de interesse, genuíno, desta vez.


“É, o que ela disse.”, comento, com um ar notoriamente irritado, e levo o copo de vinho novamente aos meus lábios. “Mas, porquê? Achas que ninguém vai gostar?”, pergunta o Afonso, com a cabeça apoiada na mão. A Mafalda vai falar por mim, mas consigo-me antecipar: “Bem, sim, mais ou menos. Às vezes, sinto que como só mostro os quadros às pessoas com as quais sou próxima, elas são obrigadas a gostar deles. Não sei se estou a fazer sentido.” Passo a mão pelo cabelo e o Afonso pede-me para explicar melhor. “Como me conhecem e gostam de mim, então, vão gostar do que pinto, porque aquilo é algo meu, como se fossem as coisas em que acredito ou a forma como falo.”


O Afonso acena com a cabeça para mostrar que entendeu e pergunta: “Então, achas que estranhos não iam gostar do que fazes?”. Olho para um casal idoso que está ao nosso lado a jantar e respondo: “Não exatamente. Acho que seria mais difícil para eles gostarem das pinturas.” “Porque tinham que te amar primeiro, é isso?”. “Sim.”, admito, desviando os olhos da mesa ao lado e olhando para ele.


“Interessante. E tu? Gostas do que pintas?”, questiona-me. Trago a mão direita à boca e começo a roer as unhas. “É um amor muito tóxico e, relativamente, temporário.” Eles riem-se e continuo: “O meu trabalho durar assusta-me. Quando acabo de pintar um quadro gosto dele. Quando pinto o segundo, apetece-me deitar o primeiro em chamas.”


A Mafalda pede a conta. “Como se cada uma das pinturas representasse uma Catarina. Como já construíste uma nova, queres acabar com a primeira, porque, simplesmente, já te cansaste dela.”, reflete o Rodrigo, acabando o seu copo de vinho. Sorrio e abano a cabeça afirmativamente. O Afonso faz uma cara confusa, juntando as sobrancelhas e levando as mãos à cabeça como se fosse um miúdo do terceiro ano a tentar resolver um problema matemático com maçãs e bananas.


“Não consigo perceber essa ideia. A maior parte dos artistas não cria algo para durar? Porque quer que o seu trabalho seja infinito? Imortal? Porque quer, de certa forma, ultrapassar aquilo que é a condição humana, ultrapassar a morte?” “Talvez.”, desta vez levo o copo aos lábios e bebo mesmo o vinho todo. “Nunca funcionou dessa forma comigo. Ter partes de mim a circular por aí assusta-me. A coisa que mais quero é que o que faço seja efémero.” O Afonso sorri e diz-me: “Queres coisas impossíveis! Se queres que tudo seja efémero, vais acabar por não fazer nada no final!”, retribuo-lhe o sorriso e digo: “Sim, parece que sim.”


Pagamos a conta e saímos do restaurante. Sinto o vento frio a bater-me na cara. O Afonso dá-me o número dele e diz-me que adorava destruir um quadro meu comigo. Despede-se da Mafalda e do Rodrigo. A Mafalda tenta convencer-me a ir a uma aula de yoga com ela, enquanto caminhamos em direção aos nossos carros. Dizemos adeus e quando olho para o espelho do carro vejo que tenho as bochechas muito vermelhas.



A casa está desarrumada e suja, vou à cozinha e sirvo-me um copo de água. Entro no quarto, chuto para o lado um par de ténis que estavam no chão e tento chegar ao canto do quarto onde estão as telas. Pego nas tintas e coloco a pintura que fiz ontem, novamente, no cavalete. Suspiro e os cabelos da franja mexem-se. Mergulho o pincel grande na tinta e pinto a tela de branco.



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