Se há algo garantido sobre a época de exames é que no final de janeiro vamos estar todos pelos cabelos com palavras. Em janeiro, palavras não faltam. Principalmente num curso como o nosso, onde há palavras em todo o lado, seja na constituição, nos códigos, na lei X, no acordum Y (cursos muito teóricos é o que dá) …, e números? Bom esses só mesmo nos artigos – e ainda bem.
Eu sempre preferi palavras a números. Sempre as achei mais interessantes do que aquelas coisas matemáticas, daí ter vindo parar a um curso de Direito e ter evitado qualquer forma e feitio que a engenharia pudesse assumir.
Mas não é sobre isto a reflexão, é sobre as palavras serem como tintas ao dispor de cada um de nós pintores. A verdade é que cada um de nós, assim como os pintores com as suas tintas, podemos ser criativos e brincar, extrapolar, rir, pintar com as palavras, pois é certo que com certa palavra e a pincelada certa podemos pintar todo um quadro às pessoas a que nos dirigimos e o melhor é q esse quadro pode assumir várias formas, feitios... Está aberto a todo um mundo de interpretações. Ao dizer, por exemplo, bola, há quem pense em bolas de neve, outros em bolas de futebol, outros em bola de carne, etc. Ademais, com cada toque do pincel na tela podemos aprofundar o que pretendemos transmitir ou borrar a pintura por completo…
...Mas números? Esses não mudam. Não tomam forma. Não são dissecados. Não são interpretados. Não são fabricados. Não são imaginados. Criatividade, aqui? 0, zero (perceberam?) Um número 5 é sempre um número cinco independentemente do contexto, é sempre 5: 1,2,3,4,5... 5! Há 10 anos (10 ou seja 10, dez, d e z - mais nada) um 5 era um 5, hoje, em Portugal um 5 é um 5, na China 5 é 5, 5 maçãs é igual a 1,2,3,4,5 maçãs. E amanhã, provavelmente, 5 continuará a ser isso mesmo: 5. Que aborrecido, não é? (Não admira que a malta do técnico ande sempre depressiva).
E mais, com meia dúzia de palavras consigo montar uma obra prima, um cenário, um conto de fadas, um mundo novo, um romance, uma fantasia, paisagens nunca antes vistas, criaturas nunca antes vistas, pessoas nunca antes vistas, apenas existentes na imaginação montadas como um puzzle. Não sei quanto a outros, mas a única realidade que pude montar com o 5 foi a referida contagem até ao 5 e flashbacks (traumas) das aulas de matemática.
De facto, é um tanto chocante como simples aglomerados de letras, e um simples aglomerado de simples aglomerados de letras pode causar um colossal impacto num amigo, num conhecido, num desconhecido, numa nação e, talvez quem sabe, no mundo. Sim, porque as palavras, apesar de se tratarem só de letras coladas, têm o poder de mudar corações, de penetrarem neles, de fazer a diferença, de ajudar pessoas, de curar um coração partido, de abraçar alguém, de consolar alguém, de relembrar alguém
… Então e os números? Consolam? Não, mas calafrios dão. Já alguém fez alguém sorrir com o uso de números? Não, mas, certamente, muitos exames de matemática já fizeram alguém chorar. Mudam o mundo? Meh, mas, certamente, tornam-no mais secante e rígido, ou como os catedráticos engravatados gostam de dizer: mais “objetivo e racional”.
Termos este dom, este privilégio de ter acesso às palavras, seja de que língua forem, e sermos capaz de as usar, é algo invejável por outras formas de vida, principalmente o facto de, muitas vezes, nos expressarmos através delas. Não é à toa que o fazemos através das palavras, que eu saiba um 5 não consegue exprimir nem um milésimo da complexidade das emoções humanas, mas já as palavras… palavras por si, sozinhas, isoladas, não, mas para isso existe a poesia. Estas coisas com letras, quando postas de uma determinada maneira, numa determinada ordem, em perfeita sintonia, chegam o mais próximo, daquilo que é possível, das emoções humanas. Por isso é que as maiores demonstrações e formulações sobre o Amor, por exemplo, são sempre em formato de poesia.
O mais irónico é que algo assim tão poderoso como as palavras está completamente dependente de nós. Somos, além de pintores, arquitetos, na medida em que não são as palavras que se fazem, somos nós que as fazemos. A meu ver, além de pintores e arquitetos, ainda podemos ser considerados Deuses pelas palavras, porque não só somos nós que lhes damos vida e sentido, como elas se movem, existem, andam de acordo com a nossa vontade. E acima de tudo: obedecem-nos.
Já os números… aquelas pestes estão se pouco marimbando para a nós, para a nossa vontade, o que seja. Que atire a primeira pedra quem, num exercício de “mostre que X = 5”, fez todas as continhas, e, pasmem, no final, X deu 7, e por mais que tentessem obrigar o 7 a passar a ser 5, ele não se demovia. Gritaram e o 7 não se mexeu. Atiraram com o lápis e o 7 nem para o lado andou. Choraram e nem um cabelo do 7 se moveu. Viraram a folha ao contrário e, nop, continua a ser 7. Solução? Refazer o exercício TODO (francamente…). Isto com as palavras era inconcebível! Era só preciso pegar na frase, chegar umas vírgulas para lá, mexer numas letras, trocar um ou outra palavra (e elas, educadas como sempre, não se importavam de chegar para o lado para receber uma nova palavra, ou até mesmo desaparecer) e cá está: uma frase com um sentido completamente diferente.
Tudo isto para dizer que devíamos ser mais gratos pelas palavras existirem e por as encararmos no dia a dia no nosso curso, porque podíamos estar piores, acreditem, podíamos estar à procura de X ou a multiplicar 5 por números que nem existem, ou a encontrar o cubo do quadrado da hipotenusa, sei lá.
Ou talvez não, dado de que tudo isto dito aqui é produto de um cérebro já esmiuçado e feito em papas por estar a olhar para palavras há demasiado tempo.
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