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Inês Fonseca

Um saco de pão

Estou na cama que nunca foi minha, mas que verão sim, verão não, se torna mais do que minha durante alguns dias. O quarto é frio devido à construção rasca das paredes. Ao menos está decorado a teu gosto, com memórias da tua vida e algumas da minha, ainda que eu só tenha entrado em cena há 6 anos. Viro-me para o outro lado e deparo-me com molduras pousadas na tua mesa de cabeceira, à espera de serem penduradas, ainda que, aquele pareça ser o lugar delas. Reparo que tens uma foto dos primos e outra minha. A foto mais escondida é a do teu próprio marido, do amor da tua vida, ultrapassado pelos novos amores que foram surgindo por meio da família que criaste.


Gostava de ter o teu apelido, mas ele morreu contigo.


Entras na divisão e convences-me a sair da cama, prometes que faremos pulseiras com as missangas que tens guardadas, debaixo da sombrinha da figueira, e que me ensinarás a costurar. Cumpres sempre com as tuas promessas, então levanto-me mais depressa que as velhas que terminam a peregrinação de joelhos pela faixa do chão de Fátima, ansiosas por se sentarem com gelo nas dobradiças, satisfeitas com a audição das suas preces.


Reparo que estamos a comer o meu almoço favorito há três almoços seguidos. Digo-te que não me importo de comer o peixe que o avô tanto gosta e abandonar os hambúrgueres com batatas fritas, ainda que os teus sejam os meus preferidos. Respondes que ele está tão velho e gasto que aquelas papilas gustativas já não conseguem diferenciar peixe de carne. Na minha inocência, rio-me, mas sei que se o avô não estivesse tão atento às notícias, teria-se levantado em direção ao congelador e teria apanhado o último gelado, enquanto te assombrava “SE O VELHO JÁ NÃO SABOREIA, ENTÃO DIZ-ME LÁ SE ISTO NÃO É GELADO DE MORANGO!”. Mal saberia ele que, sempre que chegava a semana de eu vir para o campo, tu nunca compravas de morango, era sempre de chocolate.


Continuamos o almoço, embebidos em paz e harmonia, no ruído da reportagem que passa na televisão e no cheiro de roupas antigas, que tinhas para passar a ferro de seguida. Ouço a buzina estridente do padeiro e pergunto-te se meteste o saco no portão para receber as bolinhas de pão. A resposta é afirmativa. aliás, quem serias tu se não tivesses pedido pão.


Saio disparada da mesa (sei que foi falta de respeito, mas era uma emergência), em direção às portadas amareladas, e pego no saquinho já cheio. Agradeço mentalmente à mãe do padeiro por ter posto na terra o homem dos meus sonhos, e volto a correr para a cozinha. Ultrapasso o cão, que espera ansiosamente por comida, mas compadeço-me por ele e dou-lhe um pedaço de pão, ainda que hoje em dia saiba que há maravilhas gastronómicas que não são apreciadas por cães. Continuo a minha corrida, alcanço a cozinha, mas a luz está apagada. Não há sinal, nem de ti, nem do avô. Eu jurava que tinha corrido o mais depressa possível, para onde é que vocês foram? Os pratos com restos de comida continuam em cima da mesa, a máquina de café está ligada, mas não há vestígios de café nas vossas chávenas. Acho estranho, mas vou até à figueira ver se foste mais rápida que eu e se já começaste as nossas pulseiras. A figueira está rodeada de ervas daninhas, tem ramos cortados, e não vejo um único figo. Penso que talvez esteja a alucinar e, por isso, vou até ao galinheiro ver se por acaso foste dar os pães antigos, demolhados em água, aos animais. Não ouço o galo, mas entro à mesma no espaço. Assusto-me e penso que é impossível estar a imaginar coisas. Claro que a mente de uma criança está constantemente no pico da criatividade, mas era demasiado real para ser imaginado. Olho para o chão, e para surpresa minha, vejo que já não tenho os meus ténis rosa com luzinhas que tu tanto elogiaste, até disseste que querias uns iguais. No lugar deles vejo umas botas pretas, pesadas demais para serem suportadas pelos meus pés de menina de 6 anos. Começo a sentir-me zonza e dirijo-me à casa de banho. Olho, a medo, para o espelho, enquanto lavo a cara com a água fria corrente. Aquela não sou eu. Não posso ser. Seco a cara à pressa e vou até ao telefone fixo. Marco o número da mãe e ela atende com o tom mais preocupado que consegue encaixar na sua doce voz. “FILIPA, FILHA! FINALMENTE! ONDE É QUE TU ANDAS?” Franzo as sobrancelhas e cerro os olhos enquanto a ouço disparar frases exclamativas e interrogativas em simultâneo. Penso: “mas que raio, como assim onde é que eu ando? Vim passar uma semana a casa da avó…”. Até que levanto o olhar para a parede à minha frente. Um calendário com o ano “2023” encabeçado a negrito deixa-me estática. O telefone escapa-me da mão direita, perco a força nos dedos da mão esquerda, o saco de pão solta-se, e



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