top of page
Francisco Jesus

verão

verão. o sol queima e a única coisa que nos refresca é o frio do mar, as ondas estão altas e abanam os banhistas que se aventuram, e que dão dores de cabeça aos nadadores salvadores. estou como de costume, meio na toalha meio na areia, de livro na mão. pouso o livro, levanto-me e caminho em direção à água cristalina, que chama por mim. olho para baixo, já estou vermelho no peito, devia ter ouvido quando me disseram para por protetor.


dou um mergulho. a água despe-me do negativo à minha volta, e sou só eu e o oceano, num só, nada mais. este verão, é diferente. depois de despir o calor abrasador, e o suor inevitável das horas de barriga para cima a apanhar sol, tenho pouco mais para despir. pensava que tinha trazido o resto das camadas, o que me puxa para baixo, a tristeza, o sofrimento, todos os fatores que construíam a mágoa que sentia. olho para baixo, e não, as não trouxe. aliás, não preciso sequer de me esforçar para flutuar. e choro. não compreendo porquê, sendo muito honesto. pedia-lhes constantemente para se irem embora. mas por mais que pedisse, por mais que fugisse, elas estavam lá. e agora, de repente, quando menos esperava, deixaram-me sem dizer adeus.


saí da água, para ver se as deixei à beira mar. continuo a estranhar a sua falta. mas não, a única coisa que sinto é aquele primeiro calor miúdinho na pele molhada. subi até à toalha, e também não estavam lá. procurei na tote, costuma ter tudo, mas nada. olho para a minha volta, não as vejo em lado nenhum.


sento-me, acendo um cigarro e apesar de olhar em frente, vejo para dentro. penso nos últimos eventos em que as senti, e lá estão elas. em todas as circunstâncias em que me maltrataram, ou que me acusaram, ou que pura e simplesmente dei demasiada importância a quem tinha o objetivo singular de me magoar. revejo todas as memórias na minha cabeça, e elas estão lá, essa tristeza que passou a andar lado a lado comigo. revejo as posteriores e, mesmo nas felizes, ela não me larga a mão. vejo-me a correr em pânico, fujo dela como quem corre pela vida, mas inevitavelmente paro de correr e olho para o lado: ela está lá. eu ofegante, a suor e com dificuldade em respirar, ela calma e tranquila, como quem não correu.


estou quase no fim do cigarro. apercebo-me finalmente do que aconteceu: estou feliz. não só em momentos pontuais de felicidade, o estado neutro é estar feliz. realizado. apercebo-me, e assim que o faço sinto o sol a brilhar mais um bocadinho na minha pele, já bronzeada, como quem diz ‘estás certo, miúdo’. de repente todas estas memórias não interessam. o poder que dei a quem me ofereceu o apetrecho com que vivi nos últimos tempos foi-lhes instantaneamente retirado, quando aquela foi embora. destruí a sua importância, reduzi-os à sua insignificância.


vêm-me as lágrimas aos olhos, novamente. olho para o lado, e já não dou a mão à criatura fria, de testa franzida e cara cabisbaixa a que me habituei. a minha mão está agora ligada à pequenina criatura que me olha com um sorriso de orelha a orelha, a quem dou um abraço. ‘velha amiga, bem-vinda de volta. tinha saudades tuas.’ – disse-lhe.


também eu sorria de orelha a orelha. finalmente, estou pronto para recomeçar.

levanto-me e começo a arrumar as coisas para ir embora.

com o calor que sinto no peito, nem preciso do verão para me aquecer.

38 views

Recent Posts

See All

Lápide

Comments


bottom of page